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Por que Aristóteles achava que temos uma geladeira na cabeça – e outras curiosidades sobre o cérebro
15/11/2021 - Lucia Blasco - BBC News

Quem sou eu? De onde venho? Onde estou? Essas são as perguntas que nossos antepassados formularam ao observar o mundo a sua volta, buscando entender como funcionam o corpo e a mente, explica o neurocientista espanhol Ignacio Morgado.

São também as perguntas que abrem Materia Gris - La Apasionante Historia del Conocimiento del Cerebro (Massa Cinzenta - A Apaixonante História do Conhecimento do Cérebro, em tradução livre), o livro mais recente do catedrático de psicobiologia da Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha).

"Presumir que pensamos com outro órgão do corpo que não seja o cérebro é algo impensável para uma pessoa culta dos nossos dias. Mas o certo é que não existe nenhum sinal, sentido ou sentimento especial que nos indique, nem sequer de maneira intuitiva, que pensamos com o que existe dentro de nossa cabeça", diz o escritor ao falar das dificuldades de nossos antepassados em suas tentativas de solucionar as incógnitas que tinham sobre a mente e o corpo.


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Morgado, autor de mais de uma centena de trabalhos de psicobiologia e neurociência, expõe em Materia Gris tudo o que temos aprendido sobre o cérebro e a mente "e o muito que ainda temos a aprender".

Mas quanto sabemos realmente sobre o cérebro e por que ele segue sendo o órgão mais complexo e misterioso do corpo humano?

Nesta entrevista à BBC News, o neurocientista dá algumas respostas.

O sr. diz em seu livro que "o que hoje é conhecido por nós e nos parece normal, tempos atrás era desconhecido e misterioso". Por que nos custou tanto para compreender para que serve o nosso cérebro?

– Essa coisa de que sabemos que pensamos com o cérebro é muito nova. Eu digo muitas vezes a meus alunos: "Sei que estão certos de que pensamos com o cérebro, mas como vocês sabem? Vocês sentem o cérebro pensando ou trabalhando?" A verdade é que não sentimos. Não há nada que nos diga, nem sequer intuitivamente, que pensamos com o cérebro. Nós sabemos isso porque a ciência, a cultura, o conhecimento nos ensinaram.

Tanto é assim que, durante séculos, havia muita gente que achava que não era o cérebro, mas sim outros órgãos do corpo que nos permitiam pensar e raciocinar.

Além disso, demorou muito até que as pessoas acreditassem que as enfermidades mentais eram ligadas ao cérebro. Hoje nos parece natural, mas durante muito tempo acreditava-se que eram algo espiritual.

Como os "espíritos naturais" que o médico e filósofo grego Claudio Galeno propôs como "instrumentos da alma".

– Na Antiguidade, não se sabia como funcionava o cérebro, nem tudo o que ele faz mas achavam que deveria haver algo ali dentro. É emocionante falar sobre eles! "O que faz os nervos funcionarem? Tem que haver alguma coisa! Algo tem que viajar pelos nervos que vá até os músculos para que estes se contraiam e andemos e falemos ou nos movamos", eles se perguntavam.

Mas naqueles tempos antigos não se sabia nada de eletricidade, que hoje sabemos que é a chave do funcionamento dos neurônios. Qualquer um de nós também teria recorrido a uma explicação curiosa, que poderíamos chamar de "espíritos", que se transformam para tornar possíveis as diferentes funções do corpo, como propôs Galeno, o grande médico da Antiguidade, ao falar de "espíritos naturais" e "espíritos animais".

Hoje podemos pensar que estavam muito equivocados e confusos, mas provavelmente as mentes mais lúcidas da época sabiam que esses "espíritos" eram algo que um dia chegaríamos a conhecer com mais precisão.

Isso foi o que ocorreu quando, muito mais tarde, na metade do século 18, o italiano Luigi Galvani começou a descobrir com seus experimentos com rãs que a eletricidade podia fazer com que os músculos se contraíssem, o que lhe permitiu saber que o cérebro produz sua própria eletricidade.

E agora sabemos que cada neurônio é como uma pequena central elétrica e que o cérebro é, juntamente com o sistema digestivo, o órgão do nosso corpo que mais gasta energia.

Em algum momento até se disse que o cérebro era um refrigerador, e talvez não estivessem tão enganados…

– Sim! Foi Aristóteles quem disse isso, o grande pai da filosofia. Estudar o pensamento de Aristóteles é fascinante, porque seus próprios erros estão baseados em grandes acertos, em coisas que ele via e que lhe pareciam muito normais para entender que o cérebro não podia ser o órgão da sensibilidade.

Aristóteles via o coração como o órgão da sensibilidade, ele acreditava que era o órgão que nos permitia pensar e raciocinar. Mas o cérebro tinha que servir para algo… Não estaria ali por nada! Segundo Aristóteles, tínhamos um refrigerador na cabeça. É uma teoria incrível.

Ao observar a estrutura do cérebro, ele pensou que era um refrigerador de sangue. O coração, sendo o órgão das paixões, esquentava muito o sangue quando estava apaixonado, e este era refrigerado no cérebro, que o devolvia ao resto do corpo para que seguisse funcionando normalmente.

Demoramos muito para deixar essas ideias para trás. Inclusive hoje em dia, muita gente seguem atribuindo ao coração uma capacidade cognitiva, mental, que ele não possui.

Por que continuamos nos apegando a essa teoria? Porque segue vigente a dicotomia entre cérebro e coração?

– É porque é muito mais bonito um coração com uma flecha cravada do que um cérebro, que tem esse aspecto tão… tosco! [risos] O coração é bem mais vermelho, e o cérebro é escuro, estratificado. Não é um órgão que nos convide a chamar a atenção de um ponto de vista estético. O coração, sim. Ligá-lo às emoções e aos sentimentos é algo a que já estamos absolutamente acostumados.

Sabemos pouco sobre o cérebro?

– Em, quando aparece alguém na universidade e me pergunta: "Ignacio, é verdade que sabemos muito pouco sobre o cérebro? Eu lhes mostro um livro bem grosso que tenho na minha sala, ponho em suas mãos e lhes digo: "Olha este livro. Acredita que isto é saber pouco?" E geralmente me respondem, "Não, não! Isto é saber muitíssimo!" [risos]

E nós aprendemos muito sobre o funcionamento do cérebro, sobretudo depois que nosso compatriota espanhol Santiago Ramón y Cajal descobriu como são os neurônios, que são células individuais que se conectam entre si por meio de contato, mas não por continuidade, e isso faz do cérebro um órgão inteligente. Nós aprendemos muitíssimo, mas ainda existem muitas coisas para aprender.

Mas, por mais que tenhamos aprendido, sabemos muito mais sobre a mente que sobre o cérebro, não?

– Sem dúvida! E é por isso que a mente começou a ser conhecida - até onde é possível conhecê-la - muito antes do cérebro.

Os grandes pensadores da Antiguidade sabiam muito sobre a mente humana, embora não soubessem nada sobre o cérebro. E os escolásticos [filósofos teólogos] medievais escreveram tratados sobre a mente humana que ainda hoje têm uma validade extraordinária.

Ainda hoje continua-se separando a mente do cérebro. Continuamos pensando que o mental é algo espiritual, diferente do cérebro e do corpo, raiz desse dualismo que foi primeiro proposto pelos escolásticos e mais tarde pelo filósofo francês René Descartes (alma-corpo).

Nos Estados Unidos, o pesquisador de origem suíça Louis Agassiz começou a propor que o cérebro dos negros era inferior ao dos brancos e que, portanto, os negros tinham apenas que realizar trabalhos de menor importância - nada de trabalhos intelectuais nem de fazer parte da elite social.

Mais tarde, os nazistas tentaram adotar a eugenia. O militar e psiquiatra nazista Max de Crinis apresentou a Adolf Hitler a teoria da "morte gentil", e foi iniciado um macabro programa de eliminação dos "débeis" e dos doentes mentais e criar uma raça "superior", que para eles era a ariana.

Foi demonstrado claramente ao longo do tempo que nenhuma raça é inferior a outra devido a seu cérebro ou sua genética, mas eles tinha que justificar esse racismo ideológico, que foi um dos maiores males de que da humanidade já sofreu.

Também houve teorias que diziam que o cérebro da mulher era inferior ao do homem, coisa que felizmente já superamos.

Mas agora circula um livro que fala sobre a "supremacia feminina". Para justificá-la, há cientistas que se agarram a dados que lhes agradam, mas se esquecem de outros, que não encaixam em sua tese. Isso me dá a impressão de que essa não é a melhor maneira de ajudar a igualdade entre homens e mulheres.

O sr. diz que agora sabemos muito mais sobre o cérebro, mas quais são as questões pendentes mais importantes?

– A nossa grande questão pendente é descobrir como curar as enfermidades mentais e neurológicas, particularmente essas de que temos tanto medo, como o mal de Alzheimer. Depois, há coisas que nos interessam mais do ponto de vista filosófico ou que interessam mais aos cientistas, como a forma com que os neurônios tornam possível a consciência, a subjetividade ou a imaginação.

Há tanto que nos falta saber… É impressionante! Temos um corpo que podemos ver e tocar e que nos parece algo muito compreensível. Mas quando pensamos na nossa imaginação, nos nossos pensamentos, na nossa mente… "O que é isso? É ar? É fumaça? São outra vez os espíritos naturais que voltaram?" [risos]

E, olha que nos custa sair dos espíritos! Quando uma coisa fica muito complicada para nós, seres humanos, temos a tendência a explicá-la de uma forma sobrenatural, acreditando que haja coisas que nos ultrapassam, que vão além de nós mesmos. Essa incapacidade que o cérebro humano tem de entender certas coisas de nossa própria mente é precisamente o que faz com que existam tantas crenças sobrenaturais e que os seres humanos tenham vivido, desde a mais remota Antiguidade até o presente, mergulhados nelas.

Se pudéssemos entender tudo isso que chamam de os mistérios da nossa consciência e de nossa subjetividade, o mais profundo da mente humana, provavelmente muitas ideologias religiosas e sobrenaturais não existiriam.

A ciência ainda não é capaz de explicar bem muitas coisas que vão além de nós mesmos, e eu tenho a impressão de que o cérebro humano não evoluiu o suficiente para compreendê-las.

E se conseguirmos? E se um dia pudermos compreender realmente como funciona nosso cérebro?

– Mas eu me pergunto: por que vamos acreditar que nosso cérebro tem a capacidade de entender tudo? Nós dizemos, "não pode ser que ainda não conseguimos entender certas coisas!". Temos a ânsia de saber.

Um chimpanzé não pode entender o que é uma raiz quadrada ou o conceito de entropia. Seu cérebro não tem a capacidade de compreender certas coisas, por isso não tratamos de ensiná-las a eles. Mas tampouco ele se pergunta o que é a imaginação, o que é a subjetividade ou como o cérebro cria a consciência.

Se o chimpanzé tivesse um cérebro humano, poderia fazer raízes quadradas, mas também teria um problema que agora não tem e se perguntaria sobre todas essas coisas [risos].

Isso é o que pode acontecer conosco também. Dentro de alguns anos, pode ser que saibamos o que é a subjetividade e entendamos como o cérebro a cria, mas então teríamos outros problemas que agora nem sequer somos capazes de imaginar.

Muitas das coisas que nos perguntamos são uma criação de nossa própria mente. E acreditamos que as perguntas que nos fazemos são absolutas, que estariam aqui mesmo que nós não existíssemos.

"Por que as coisas precisam ter um princípio e um fim?" Se não existisse nenhum cérebro, nem nenhuma mente humana que a fizesse, essa pergunta não teria sentido. Mas nossa mente é como é e precisa saber por que as coisas acontecem. "Por que somos assim?" Algum dia saberemos. Mas aí, então, teremos novas perguntas. Sempre haverá incógnitas que nos ultrapassam.

  

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