capa | atento olhar | busca | de última! | dia-a-dia | entrevista | falooouu
guia oficial do puxa-saco | hoje na história | loterias | mamãe, óia eu aqui | mt cards
poemas & sonetos | releitura | sabor da terra | sbornianews | vi@ email
 
Cuiabá MT, 24/11/2024
comTEXTO | críticas construtivas | curto & grosso | o outro lado da notícia | tá ligado? | tema livre 30.947.872 pageviews  

Tema Livre Só pra quem tem opinião. E “güenta” o tranco

TEMA LIVRE : Antonio Copriva

Outras colunas do Tema Livre

A Figueira do Bom Jardim
07/12/2005

A linearidade bem-comportada das estradas de asfalto transforma as belezas da natureza em rotina muitas vezes entorpecedora. O corte fundo do piche no chão deflorado sugere trabalho, progresso, crescimento, desenvolvimento, disciplina, ordem, metas pré-fabricadas.
É saudável, pelo menos de vez em quando, girar o controle de direção e cair na aventura, sair off-road e mergulhar em paisagens desconhecidas, caminhos diferentes, trilhas que a imaginação irá beber com ansiedade.


Fiz isso dias atrás. Ia para uma dessas enfadonhas reuniões de negócios numa cidade vizinha, ligada a tantas outras por essa serpente escura que se move sob rodas, quando uma plaqueta de madeira rústica à beira da estrada chamou minha atenção, mexendo em minha memória avoenga como um tatu na toca. Freei o automóvel, manobrei e segui pela estradinha de terra fofa, por entre buracos, mata-burros e pontes em estado precário. O ar rescendia a assa-peixe e meu espírito vagava pelo ventre verde do cerrado como um tropeiro bêbado obedecendo a vontade da montaria.


Numa baixada, depois de um grotão onde as águas de um riacho serpenteavam preguiçosamente no final da tarde, deparo-me com a inacreditável imagem centenária de uma figueira à beira da estrada.


A majestade da gigantesca árvore se projeta sobre o caminho e avança para o alto num misto de proteção e aviso. Seus galhos não são tentáculos, nem garras, mas grandes dedos anciãos que remetem a memória para outros labirintos, carros de boi, cavalgadas, homens rústicos tocando suas tropas, revoltosos acampando debaixo do monumento que ela representa há mais de um século.


Passar lenta e silenciosamente debaixo de sua arquitetura é um sinal de reverência imperioso.


À medida que avanço com meu artefato de locomoção, que contrasta grotescamente com a figueira, posso ouvir claramente vozes, murmúrios, arrufos, gemidos, roncos, relinchos e conversas abafadas, sons impregnados em sua casca e em sua seiva, no balanço lento e cadenciado de suas folhas, serenas em movimentos imperceptíveis como um monge esculpido no espaço contra o paredão rugoso do cerrado.


Uma voz surge do nada chamando por quem passa, e me encontro e me perco na fronteira do encanto com o medo. De onde virá essa vibração? Contenho o impulso primevo da fera acuada e suspendo a marcha do bicho metálico. Busco, com receio, de onde partiu aquele som que gelou meu sangue e incandesceu minha mente. De trás da monumental figueira um vulto se insurge contra as sombras e se dirige em minha direção. Não entro em pânico porque me movimentei para a vizinhança de outro universo e já não vejo aquela figura como um ente mas como uma entidade. O caboclo forte, de chapéu e chinelas de couro, calça de brim folgada e camisa de linho, cigarro de palha entre os dedos, me cumprimenta desnudando a cabeça onde fartos cabelos brancos molhados de suor revelam um velho rijo e sério de olhar penetrante e calmamente alerta. Por alguns instantes só existimos ali, a sós, a figueira, o velho, eu e a imensidão silenciosa das matas e do cerrado. O tempo se perde nos desvãos do firmamento e aquele quadro que se pintou numa moldura de éter e plantas, de chão cru, poeira, pedras, cascas e galhos, desnuda em segundo plano uma construção antiga, de sólidas paredes e telhado escurecido pelo limbo do tempo, envolvida em uma suave bruma de onde gritos abafados de crianças e ruídos de animais parecem descortinar uma saga que se sucede a outras que chegam até nós em ondas sucessivas. Olho para o alto da figueira e imagino que esteja ligada à abóbada celeste por um alo de luz incandescente.


O leve farfalhar dos galhos da árvore, numa lufada de vento mais agressiva, me reconduz como uma vertigem para o espaço material no qual estou inserido. O motor do veículo ronca familiar e ritmadamente enquanto contemplo os ponteiros e as luzes do painel como se despertasse de um transe. Ao lado, a figueira mantém sua majestade. Uma fumaça branca e espessa se insinua pela chaminé da casa senhorial de onde o velho, em pé na varanda larga e acolhedora, com seu chapéu e seu cigarro, acena para mim num gesto de despedida. Observo meu equipamento fotográfico por alguns instantes mas percebo que essa cena não pode ser reproduzida dessa forma. Na tela da memória, a figueira, a casa, o cenário rústico e o velho já estão gravados indelevelmente, há muitos e muitos anos. É hora de seguir viagem.


OUTRAS COLUNAS
André Pozetti
Antonio Copriva
Antonio de Souza
Archimedes Lima Neto
Cecília Capparelli
César Miranda
Chaparral
Coluna do Arquimedes
Coluna do Bebeto
EDITORIAL DO ESTADÃO
Edson Miranda*
Eduardo Mahon
Fausto Matto Grosso
Gabriel Novis Neves
Gilda Balbino
Haroldo Assunção
Ivy Menon
João Vieira
Kamarada Mederovsk
Kamil Hussein Fares
Kleber Lima
Léo Medeiros
Leonardo Boff
Luciano Jóia
Lúcio Flávio Pinto
Luzinete Mª Figueiredo da Silva
Marcelo Alonso Lemes
Maria Amélia Chaves*
Marli Gonçalves
Montezuma Cruz
Paulo Corrêa de Oliveira
Pedro Novis Neves
Pedro Paulo Lomba
Pedro Pedrossian
Portugal & Arredores
Pra Seu Governo
Roberto Boaventura da Silva Sá
Rodrigo Monteiro
Ronaldo de Castro
Rozeno Costa
Sebastião Carlos Gomes de Carvalho
Serafim Praia Grande
Sérgio Luiz Fernandes
Sérgio Rubens da Silva
Sérgio Rubens da Silva
Talvani Guedes da Fonseca
Trovas apostólicas
Valéria Del Cueto
Wagner Malheiros
Xico Graziano

  

Compartilhe: twitter delicious Windows Live MySpace facebook Google digg

Comentários dos Leitores
Os textos dos leitores são apresentados na ordem decrescente de data. As opiniões aqui reproduzidas não expressam necessariamente a opinião do site, sendo de responsabilidade de seus autores.

Comentário de magda lugon (magdalugon@gmail.com)
Em 22/04/2010, 09h37
A Figueira do Bom Jardim
Prosa poética precisa, sem excesssos de linguajar, conteúdo profundo de sentimentos íntimos e comunicação visual de grande expressão. Gostei muito.

Comentário de tag (tguedesdafonseca@yahoo.com.br)
Em 07/12/2005, 14h54
Belo texto! Viva Dardanelos!
O cerrado por onde andei na mata é um pouco
diferente do seu, onde também andei, e só,
porém menos do que acordar todo dia em plena natureza, porque assim é Brasília e redondezas e Mato Grosso é tão grande que se tiver redondeza é ele mesmo.

  Textos anteriores
26/12/2020 - MARLI (Marli Gonçalves)
21/12/2020 - ARQUIMEDES (Coluna do Arquimedes)
20/12/2020 - IDH E FELICIDADE, NADA A COMEMORAR (Fausto Matto Grosso)
19/12/2020 - 2021, O ANO QUE TANTO DESEJAMOS (Marli Gonçalves)
28/11/2020 - OS MEDOS DE DEZEMBRO (Marli Gonçalves)
26/11/2020 - O voto e o veto (Valéria Del Cueto)
23/11/2020 - Exemplo aos vizinhos (Coluna do Arquimedes)
22/11/2020 - REVENDO O FUTURO (Fausto Matto Grosso)
21/11/2020 - A INCRÍVEL MARCHA DA INSENSATEZ (Marli Gonçalves)
15/11/2020 - A hora da onça (Coluna do Arquimedes)
14/11/2020 - O PAÍS PRECISA DE VOCÊ. E É AGORA (Marli Gonçalves)
11/11/2020 - Ocaso e o caso (Valéria Del Cueto)
09/11/2020 - Onde anda a decência? (Coluna do Arquimedes)
07/11/2020 - Se os carros falassem (Marli Gonçalves)
05/11/2020 - CÂMARAS MUNICIPAIS REPUBLICANAS (Fausto Matto Grosso)
02/11/2020 - Emburrecendo a juventude! (Coluna do Arquimedes)
31/10/2020 - As nossas reais alucinações (Marli Gonçalves)
31/10/2020 - MARLI (Marli Gonçalves)
31/10/2020 - PREFEITOS: GERENTES OU LÍDERES? (Fausto Matto Grosso)
26/10/2020 - Vote Merecimento! (Coluna do Arquimedes)

Listar todos os textos
 
Editor: Marcos Antonio Moreira
Diretora Executiva: Kelen Marques