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RELEITURA
Já não fazem libélulas como antigamente...
14/05/2011
- Marcos Antonio Moreira - fazperereca@yahoo.com.br
No sábado, 13, chegaram as libélulas -- o "olho do peixe", segundo os ribeirinhos. Milhares delas "peneiravam" sobre o rio Cuiabá, na região do Porto, anunciando a chegada dos cardumes.
À frente, os lambaris, navegando quase à superfície, beiradeando os barrancos. Na seqüência, mais ou menos nesta ordem, também quase à flor da água, os douradinhos, as piavinhas, as piraputangas e os dourados. Pouco abaixo, os piavuçus e os pacus. Fechando a "manada", rente ao fundo do rio, os curimbatás e os peixes de couro: fidalgos, jurupencens, jurupocas, caxaras, pintados e jaús.
Desde a lua cheia de abril, quando teve início a lufada e os peixes deixaram o que ainda resta das baías nos pantanais do Rio Abaixo, cardumes avançam contra a correnteza do rio Cuiabá, tentando abocanhar a comida que está logo adiante e escapar da fome dos que vêm logo atrás. Só os mais fortes e mais ágeis conseguem se pôr a salvo da voracidade dos predadores naturais durante a longa jornada rio acima.
Uma jornada penosa para os cardumes que, invariavelmente, alcançam aquele trecho do rio que divide Cuiabá de Várzea Grande, exatamente uma lua depois.
E mais uma vez, nesta lua cheia de maio, como ocorre desde tempos imemoriais, lambaris, douradinhos, piavinhas, piraputangas, dourados, piavuçus, pacus, curimbatás, fidalgos, jurupencens, jurupocas, caxaras, pintados e jaús alcançaram o Porto, na Capital, no tempo e lua marcados, como anunciaram as libélulas.
Além dos inimigos naturais, este ano, os peixes enfrentaram e superaram mais e maiores obstáculos que os cardumes que os precederam.
O reduzidíssimo volume d'água no rio Cuiabá, para esta fase do ano, dificultou enormemente o deslocamento da "comitiva" ao longo do caminho. Além de pouca, a água está muito suja, poluída. O volume não é suficiente para diluir a espantosa concentração de coliformes fecais -- 200 vezes maior que o tolerado pela Organização Mundial de Saúde.
Isto porque uma estatal, Furnas -- "conluiada" com um grupo de empreiteiras --, pretende fazer dinheiro logo e está represando o máximo de água que pode para produzir energia em uma usina que não tem importância alguma. A não ser para Furnas e para as empreiteiras diretamente envolvidas na construção da hidrelétrica. Uma obra que ficou paralisada por duas décadas e que está sendo tocada agora a toque de caixa, só para ser privatizada a preço de bananinha em fim de feira em Nossa Senhora do Livramento.
Apesar do discurso ambientalista -- improvisado para justificar o aporte de recursos públicos do Ministério do Meio Ambiente -- a estatal e seus parceiros estão pouco se lixando para as nefastas conseqüências da obra para o rio, para os peixes e até para as lava-bundas, por conta dos tais coliformes fecais.
"Lava-bunda" é como os ribeirinhos chamam as libélulas que anunciam a chegada dos cardumes e os tempos de fartura. "Coliformes fecais" é como os especialistas chamam bosta n'água.
O nível do rio, no final da estação das águas, está abaixo da cota zero. Normalmente, isto só ocorre no auge da seca, entre setembro e outubro. O pouco volume de água força a concentração dos cardumes, o que facilita a ação dos redeiros.
-- "Quando escurece, isto aqui vira um inferno. Passam o pano a noite toda. Quem reclama está se arriscando a levar um tiro. Até os tarrafeiros estão reclamando", lamenta um morador da Alameda Júlio Müller, em Várzea Grande, que vive -- pelo menos, tenta viver -- da pesca de anzol.
"Passar o pano" é como os ribeirinhos chamam a pesca com rede. "Passar o pano" é -- pelo menos, deveria ser -- uma prática coibida.
Furnas, a estatal que se julga dona da água, e os redeiros e tarrafeiros, que se julgam donos dos peixes, agem protegidos pela inoperância dos órgãos ambientais, que deveriam tomar conta do rio, da água e dos peixes. Deveriam.
Isto, porém, não é tudo. O pior ainda está pela frente para boa parte dos cardumes que conseguirem superar o baixo volume de água, os elevados índices de poluição, a ação dos redeiros, dos tarrafeiros e o banzo oficial -- sem contar os travessões, as itaipavas que a partir da Capital se repetem rio acima.
Aqueles cardumes "programados" para deixarem o leito do Cuiabá, adernar a estibordo e ganhar as águas do rio Manso, sem saber, caminham para a morte certa. Morte líqüida e certa, no caso.
Igual destino aguarda as libélulas programadas para guiá-los pelas águas do rio Manso.
As águas de Manso, antes límpidas, estão envenenadas -- impróprias para consumo humano e animal, inadequadas portanto para o normal desenvolvimento da ictiofauna. Para as larvas das libélulas, inclusive.
Tudo isto porque Furnas tem pressa. A estatal resolveu atropelar o cronograma da obra só para antecipar a inauguração da usina. E para apressar a formação do reservatório, antecipou o fechamento das comportas sem desmatar a área a ser alagada e reduziu ao mínimo a liberação de água.
Chegou mesmo ao cúmulo de interromper completamente a vazão das águas de Manso, o principal tributário do Cuiabá, tudo sob olhar complacente das autoridades ambientais de Mato Grosso. Complacência que chegou ao limite de dispensar procedimentos corriqueiros em qualquer usina hidrelétrica, como a contrução da indispensável "escada para peixe".
É esta omissão da Fema que vai interromper tragicamente a longa caminhada iniciada pelos cardumes na lua cheia de abril, nos pantanais do Rio Abaixo e que vai terminar com a morte dos peixes, por exaustão ou asfixia, diante do imenso paredão de concreto da usina de Manso.
Desta vez, porém, o crime ambiental terá um culpado. Melhor dizendo: uma culpada. Por outra: milhares de culpadas: as líbelulas. Afinal, foram elas, as libélulas, os "olhos dos peixes", que não viram o perigo e conduziram para uma cilada os cardumes confiados à sua guarda.
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Texto originalmente publicado no site www.midianews.com.br em 16/05/2000
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