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comTEXTO : 31 de Março, 1964

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31 de Março, 1964
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O dia do golpe
20/10/2005- Talvani Guedes da Fonseca



CAPÍTULO XXXI

Levara mais de duas horas para atravessar a Zona Sul e chegar a Norte. Notara algo estranho naquele lado da cidade, que desconhecia, e estava ficando com fome. Só nas proximidades do Centro via construções do início do século, em estilo europeu, presas no tempo, porém ali, no pé de uma ladeira na Gamboa, na parte mais escondida do bairro, tudo era esquisito, diferente, havia sujeira por todo lado.

Provavelmente, quem o deu a Desdê, pregou uma peça e ele disse:
¨Esse endereço deve estar errado. Que lugar mais estranho!¨

Desconfiado, cansado da longa e extenuante tirada desde a Zona Sul, teve que estacionar num beco e após averiguar se não havia perigo, de olhar para todos os lados àquela visão fora do real, só então deixou-a descer do carro.

¨Estou preocupada¨.

¨Com quê?¨

¨Que você não fugirá, quando eu preciso tanto de você...¨

Para não piorar as coisas, respondeu:

¨Não tenho a tarde toda, economize meu tempo, não desperdice¨.

Desistira de decifrá-la quando ela não quis explicar como conseguira o endereço. Impacientava-se, mas decidira aguardá-la e pacientemente, por uma questão de honra, insistiu:

¨Eu prometi que ajudaria e falei sério. Faça o que tem que fazer, desde que faça logo¨, disse-o e calou, deixou-a ir só tentar achar um lugar que evidentemente, se fosse uma clínica, jamais poderia ser ali. Conferindo o endereço, dirigiu-se a um lugar de difícil acesso, recuado, sombrio, asqueroso e mais, repulsivo. Realmente assustador.

Observava-a de longe, viu-a entrar por uma calçada empoeirada numa viela, em seguida num beco, percorre-lo e subir uma escada e por fim, minutos depois, por volta das quatro horas, voltar sem ter encontrado o local. Sem que Desdêmona notasse ele a seguia, a via caminhar pela sombra do terreno, parar diante de uma estreita casa de primeiro andar, apertada entre um muro de pedras e um terreno coberto por um tapete ocre de folhas secas, muito lixo, entulho cheirando a restos assim como a imundice dos escombros de metralha fedia a esterco, urina e fezes humanas.

Um lugar fétido, ela comentou que devia estar cheio de ratos.

À sombra de uma jaqueira espalhava-se no ar e ainda fumaçava a cinza quente de uma fogueira.

Um vira lata feio, de uns dois palmos de altura, apareceu com os pelos eriçados, rosnava, dentes à mostra, e Desdê não agüentou, ligeirinho voltou ao carro.

Com os olhos parados no cão, como se de repente percebesse o perigo, ficara pensativa, dava para ouvir pulsar seu coração, sem ter qualquer noção de onde estava. Surpreendera-o a estranheza de um lugar em perfeito silêncio onde nem vento havia, provavelmente nem moradores havia naquele cortiço sujo, povoado de sombras, abandonado ao longo de um estreito terreno baldio que acabava num muro escuro de pedra, cheio de destroços de velhas casas, surradas, sinistras, apareciam aqui e ali os alicerces, mundo recluso, escondido no sopé de uma escadaria de suave declive que levava a outros cortiços em cima do morro.

Estranho e secreto silêncio tinha o mais degradante lugar que já vira na cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Sentia-se como se estivesse dentro de um depósito de lixo, repulsivo, nojento, deprimente demais, insuportável!

Viveria alguém naquelas condições?

Nunca iria imaginar que naquela parte velha da cidade, quase em pleno centro do Rio de Janeiro, haveria miséria pior do que a testemunhada em Brasília Teimosa, uma das mais novas invasões urbanas de Natal.

A segurança era mais um motivo para se preocupar.

Queria sair dali, daquele ambiente, o mais rápido que pudesse.

A sensação que tinha era de estar numa cidade em ruínas, só esperava que tudo acabasse logo.

Não obstante a arquitetura presa no tempo, do começo do século, que ele tanto admirava, não se identificava de jeito nenhum com aquele lugar obscuro, uma mistura de pátio e jardim.

Qualquer ar era insuficiente para dispersar o odor insuportável naquele lugar promíscuo onde não dava, não havia como respirar; um ambiente abafado e sufocante; nem mesmo dava para sentir o agradável aroma dos pés de pitanga, carambola, de um frondoso sapotizeiro carregado de frutos.

A despeito do ambiente sujo, sinistro, sempre reclamando que o lugar era horrível, batendo de porta e porta, depois de olhar mais uma vez ao redor Desdê pegou o papel onde anotara o endereço e mais uma vez foi em frente.

A paciência se esgotava rapidamente.

Recusara-se a acompanhá-la, e, com nojo, alertou-a:

¨Veja se não vai demorar. Estou com pressa! Cuidado onde pisa!”

Enquanto esperava, ao ver Desdêmona desorientada, indo de um lado para outro, só aí verdadeiramente percebeu o absurdo da situação em que se metera.

Não seria correto largá-la, sozinha, sobretudo, porque percebera que ali ela nada conseguiria:

¨Cuidado para não cair¨, aconselhou-a.

Meio contrariado, inquieto, ele esperou, sabia que seria mais seguro não confiar e cair fora, mas, não a abandonaria nem a mulher nenhuma, ali.

Ficou um bom tempo olhando em volta, sem perdê-la de vista.

No fundo de um terreno, sob uma varanda de ferro, enferrujada que se projetava sobre a calçada e parecia cair, desafiando a gravidade, ela parou, bateu palmas e de longe ele percebeu que ela tinha descoberto alguma coisa, deduziu até que lá talvez fosse o endereço.

Na pequena sacada de uma casa de primeiro andar, contrastando com bela fachada decorada com azulejos coloridos que cobriam partes ou pedaços da parede, descabelada, uma verdadeira figura de bruxa, ao ver Desdê, uma velha, que estava sentada numa cadeira de balanço, na sacada, atrás de uma grade envidraçada, levantou-se, entrou e fechou a porta.

Desdê voltou, de novo, com medo e apesar da profunda irritação, à uma espera que parecia levar uma eternidade, acompanhou do carro a cena surrealista, inimaginável, Desdê procurando e nada encontrando. Para a sua surpresa, após a inútil busca, minutos depois ela voltava nervosa, esbaforida, saltitante, seus passos martelavam no cérebro ao ecoar no silêncio da tarde, um som estridente, de saltos altos e finos batendo na calçada.

Lívida, atônita, Desdê contou que a mulher que fora procurar sumira e com alguma satisfação, ele só respondeu:

¨Pode ser um equívoco, confira o endereço¨.

¨Já conferi, mais de uma vez!¨

E ele, que já tinha feito mais do que fora pedido observou:

¨Eu não posso mais levar essa história adiante, Desdêmona, e quem lhe deu essa indicação não quer que você aborte. Está claro que aqui não é lugar de clínica, nem as piores de Natal, das aborteiras clandestinas que atendem a população pobre e as prostitutas de Maria Boa e Rita Loura, ficam em lugares como este, assim, tão sujo!”

¨Vá à merda¨, disse ela, e olhou para trás, como à procura do homem da motocicleta.

...

Leia amanhã o Capítulo XXXII

Jornalista, escritor e poeta norte-rio-grandense

  

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