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comTEXTO : 31 de Março, 1964
O dia do golpe
26/10/2005- Talvani Guedes da Fonseca
CAPÍTULO XXXVII
Sabia mais do que deveria, no entanto, os outros continuavam falando.
¨Põe água para ferver, por favor, Sarita; vamos tomar um café¨, pediu o dirigente, e ela respondeu na bucha:
¨Isto não é um acampamento, gente, estamos em guerra¨, observou, dizendo que não estavam num clube de campo, ¨aqui ninguém guarda segredos, todos sabem de todos e eu presumo que todos nós temos algo em comum esta noite¨, continuou:
¨Posso perguntar, por exemplo, se esse esconderijo é bom o bastante ou se não seria melhor a gente começar a fazer as malas e deixar esta cidade com rapidez e segurança, para buscar um refúgio mais seguro, um local onde vocês possam ficar realmente em segurança? Aqui vocês estão longe disso. Temos que superar essa tragédia e fazer a diferença, saiam do Brasil enquanto ainda podem, companheiros¨, e, olhando cada um nos olhos, advertiu:
¨Qualquer hesitação pode ter terríveis conseqüências¨.
¨Você definiu bem, companheira, é exatamente isso¨.
¨O melhor é vocês partirem imediatamente¨.
Ela encarava o golpe sob um ponto de vista bem pessoal, mas dentro de um quadro mais amplo, com outras explicações, numa abordagem revolucionária.
Demonstrava mais que habilidade, sagacidade, e grande capacidade de argumentar, via o golpe como um capítulo importante da história, dava-lhe uma interpretação sem precedentes, que ganhava outro sentido, na medida e que o militar desempenhava seu papel conscientemente, não fora levado pura e simplesmente pela direita, quase que como se fosse realmente a força gigantesca que sempre teve importância fundamental em momentos históricos do país:
¨Por isso, para mim não houve o fator surpresa¨.
Citando Gossudarstve i revolutsia, ou O Estado e a revolução¨, como se só o dirigente estivesse na sala, Sarita prosseguiu:
¨Lenine previu o desaparecimento do Estado para logo depois da vitória da ditadura do proletariado, mas no caso em questão, eles, os militares, querem o mesmo ou algo parecido com o que nós queremos; em outras palavras, querem um Estado nacional forte, capaz de enfrentar as forças externas. Eles pensam como soldados e como eu sempre disse, nosso inimigo não é o militar, é o imperialismo. Vocês esquecem o que disse o marechal Lott, quando foi candidato a presidente e perdeu para Jânio? Ele disse que são os grupos econômicos estrangeiros que ameaçam a economia e os valores nacionais. Daí, o que está acontecendo hoje ser é a consolidação de um plano objetivo, estratégico, que vai servir de lição e para ser usado em toda a América Latina¨.
¨Dissemos, companheira, dissemos¨, observou, irônico, o dirigente.
Além da afinação humana, a política era grande, entre eles.
¨Eu me lembro daquela campanha, só tinha 14 anos, mas a turma da Juventude e deu uma ruma de espadas, enquanto minha família com a vassoura na mão, o símbolo de Jânio, varrendo para cima e para baixo¨.
¨Imagine¨, disse ela, ironicamente, ¨onde já se viu um golpe de Estado sem um tiro?!?¨
¨Ora, Sarita¨, observou o dirigente, ¨isso é o Brasil, nem na abolição nem na proclamação da república ou em 1930 houve tiros nem povo, no máximo, classe média. Lembra de Itararé, a batalha que houve? Pois é, não houve¨.
¨Interessante, a gente estar aqui, exatamente hoje, recapitulando essas coisas¨, voltou a falar Sarita, ¨quando Getúlio morreu o vice Café Filho, assumiu e o que fez? Se Vargas seguira uma política de industrialização nacionalista autônoma, independente do capital externo, com o Estado incentivando o desenvolvimento econômico, basta ver a criação da Petrobrás, dona do monopólio da extração de petróleo, uma empresa estatal formada exclusivamente por capitais nacionais. A idéia de se desenvolver uma indústria petrolífera nacional vinha desde a década de 1940, tinha forte apelo popular porque o Brasil importava todo o petróleo que consumia. Você se lembra da campanha do petróleo? Até o governo Juscelino não produzíamos eletrodomésticos, tratores, caminhões, máquinas, importávamos tudo. Com a promessa de fazer em 5 anos o que outros só fariam em 50, entrou Juscelino Kubitschek de Oliveira que, por ser amigo, cria de Getúlio e homem de bons modos, ignorou e em 5 anos, claro, à base de empréstimos externos e emissão de moeda, o Brasil viveu um surto desenvolvimento e de prosperidade econômica sem par, sem desestabilidade política, o que torna tudo mais interessante, com o Marechal Lott, Ministro da Guerra, neutralizando a direita fardada, aliada ao imperialismo, mantendo sob controle, durante os cinco anos em que o governo durou, as forças armadas e, enquanto isso, eram construídas novas rodovias, asfaltava-se e duplicava-se a Dutra, a única que possuíamos, Brasília, ferrovias, hidrelétricas, siderúrgicas, criava-se empregos, alegria, surgia a Bossa-Nova, o Cinema Novo, ganhamos a Copa do Mundo, mas, os milicos não deram valor a isso, chamavam Juscelino de ladrão e, de fato, teve um preço¨.
O plano de metas de Juscelino acentuara as desigualdades sociais, a renda concentrava-se nas mãos de poucos. Com o aumento do número dos sem-terra, o êxodo do campo provocou o inchaço das cidades, mas ainda assim Goulart conseguiu aprovar no Congresso algumas reformas, a do abastecimento, criou Superintendência Nacional de Abastecimento, Cobal, a de armazéns, Cibrazem, a Superintendência de reforma agrária, o sistema nacional de comunicação, a lei anti-trust, a da remessa de lucros para o exterior, a resistência mais histérica que encontrou foi aos projetos das reformas agrária e urbana. De fato, o Brasil passou por transformações rápidas, entretanto, esse surto de desenvolvimento de teve um preço. Ele construiu estradas, siderúrgicas, hidrelétricas, ferrovias, ergueu uma cidade no meio do nada, mas, quando saiu os banqueiros internacionais não queriam mais emprestar dinheiro para o Brasil, não entrou mais dinheiro de fora e o governo continuou emitindo dinheiro, a inflação subindo cada vez mais, prejudicando, é claro, o proletariado e os pobres. Goulart era vice de JK e nós o apoiamos para ser vice de Lott, mas quem venceu foi Jânio, o louco populista, acusando de ter deixado a economia brasileira em ruínas, e, de fato, quando assumiu encontrou uma enorme conta a ser paga.
¨Pois não é que a história se repete?¨, insinuou Humberto, ¨eu já não acho que o motivo do golpe seja a insistência de Goulart em promover a reforma agrária. No final do governo Juscelino, os bancos internacionais não quiseram mais emprestar dinheiro ao país, não entrava um tostão, de fora, e, para submeter o Brasil à política monetária internacional, o FMI tentou impor um plano econômico, elaborado em Washington, e a resposta, clara, foi não, Juscelino rompeu com o Fundo Monetário Internacional. Goulart, que deixara o ministério do trabalho devido à sua proposta de dobrar o valor do salário mínimo, fora derrubado do cargo por coronéis do Exército, e, em 1961 teve seu nome vetado e só assumiu depois de violada a Lei Maior, a Constituição, com a aprovação forçada da emenda constitucional que instituiu o parlamentarismo, restringindo-lhe os poderes e em janeiro de 1963, mesmo que vitória esmagadora no plebiscito tenha lhe dado de volta todos os seus poderes constitucionais, como presidente, não o deixavam governar.
¨Se analisarmos matematicamente, Goulart tinha tudo para dar certo”, disse Sarita, ¨se em 1963 o plebiscito devolveu o presidencialismo a ele, nas eleições de 62 havia tido espetacular avanço, o PTB passou de 66 para 104 deputados e de 5 para 10 senadores, se soubesse articular alianças consistentes, Goulart teria no Parlamento sustentação capaz de abafar oposição, ocorre que com a restauração do presidencialismo, se deixou envolver pela esquerda radical. Sua idéia de era fazer grandes comícios, onde assinaria, os decretos das reformas que o Congresso negava-se a aprovar, mas foi no dia 13, quando anunciou que todas as refinarias particulares de petróleo privadas, de proprietários brasileiros, a partir daquele instante passavam a pertencer ao povo, que ele mexeu no imperialismo¨.
¨A queda de Goulart pode ser explicada de forma mais simples, minha gente, ele está caindo não pela reforma agrária que propôs, mas pela que para o setor financeiro¨, interrompeu o dirigente, ¨porque quis implantar um estatuto disciplinar para o capital estrangeiro, prevendo a definição exata do que seria capital estrangeiro, que se estabelecesse que margem de lucros esse capital poderia repatriar sob qualquer forma, anualmente, que se definisse que setores da atividade econômica nacional ficariam interditados à ação desse capital, além do petróleo, energia elétrica, minerais estratégicos, bancos de depósitos e outros. Goulart quis estabelecer as condições em que se poderia repatriar esse capital, que se identificasse a utilização dos lucros desse capital não-repatriado, mas submetido ao controle de grupos estrangeiros¨.
Sem haver entendido nada, sentindo-se totalmente por fora do que eles diziam, no entanto sentindo-se parte de algo maior o nordestino pediu-lhes para explicarem suas interpretações sobre o papel dos militares e, lembrando-se subitamente de Seu Alberto, voltando-se para o dirigente, repetiu a frase ouvida no churrasco, de que golpe era resultado de um longo e gradual processo.
¨A proposta de Goulart era identificar as relações de tipo financeiro e comercial do capital estrangeiro com suas matrizes, para estabelecer anualmente que parcela das divisas disponíveis poderia ser utilizada para o serviço do capital estrangeiro e ele quis mexer no segmento bancário, suas reformas instituiriam normas que submeteriam a uma adequada orientação e utilização de toda aquela parte da poupança nacional que passasse pelo sistema bancário, criariam uma estrutura de bancos especializados que permitisse orientar recursos em condições adequadas para o setor agrícola, o setor exportador e o setor produtor de equipamentos, ou seja, evitar que o sistema bancário contribua para concentrar o poder econômico em benefício de grupos reduzidos, e ia fazer isso com uma estrita fiscalização bancária, para evitar que as grandes apropriações de recursos, que em todo período de inflação são realizados através do sistema bancário, ficassem nas mãos de poucos, enfim, ele queria evitar que as organizações estrangeiras operassem como bancos de depósitos no Brasil¨.
¨Para dizer a verdade, estou tentando entender, mas não tenho a menor idéia disso o que vocês estão falando¨.
¨E havia as outras reformas¨, continuou Sarita, interrompida na ato:
¨Gente¨, falou o potiguar, ¨vocês estão falando no passado, será que ele já caiu?¨
Sarita fez que não ouviu:
¨E as outras reformas, companheiro? A administrativa, a universitária, a fiscal, compromissos a serem cumpridos no curto prazo pelo governo federal. A fiscal seria uma reforma capaz de assegurar que o aumento de renda decorrente de desenvolvimento econômico prioritariamente se destinasse ao aumento dos investimentos e ao aumento do consumo do povo trabalhador, inclusive os trabalhadores agrícolas, que toda a política de subsídio do governo ao setor privado, tanto de caráter financeiro como fiscal ou cambial, fosse reconsiderada de forma a evitar que seus benefícios sejam utilizados para aumentar o consumo dos grupos de altas rendas e para concentrar o poder econômico e que se assegurasse a estrita punição daqueles que fraudassem o fisco, particularmente no setor dos impostos diretos¨.
¨A reforma eleitoral, eu sei, ele disse e Angicos que incluiria o voto do analfabeto e a elegibilidade das praças de pré¨, disse o potiguar, com o orgulho do testemunho.
¨E na universitária¨, interrompeu o dirigente, ¨ele quis que se triplicasse em dois anos, de 1964 a 1966, e decuplicasse em cinco anos, de 1964 a 1969, o número de estudantes de nível superior no país¨, e enumerou alguns itens:
¨Ele queria que se garantissem bolsas aos estudantes de nível superior que demonstrassem real capacidade e não dispusessem de meios para sua manutenção, que se eliminassem a vitaliciedade das cátedras e se instituísse um sistema flexível de recrutamento de professores e assistentes, que se efetivasse a utilização dos equipamentos das universidades e escolas superiores pela criação de institutos que reunissem disciplinas afins e pela instituição ampla do sistema de aulas noturnas¨.
¨O resto, você sabe, potiguar¨, expressou-se Humberto, o contato, ¨o conjunto de reações do alto clero católico, a direita manipulada pelos Estados Unidos, formada pela elite tradicional, os banqueiros, latifundiários, fazendeiros e empresários industriais, do comércio, e das grandes corporações estrangeiras, mas os ativistas anticomunistas, neofascistas, articularam o golpe militar que aí está, segundo eles, para pôr fim em definitivo à isto que chamam de ¨república populista¨ e que, como se vê, pelo que diz as rádio, não existe. O que o golpe de hoje quer é neutralizar a imprensa, sindicatos, entidades estudantis e populares identificadas com Goulart e afastar o núcleo dirigente que o cerca, como os políticos de esquerda e os militares nacionalistas. Este golpe não só impede a sobrevivência das instituições democráticas como permitirá a sobrevida das estruturas de privilégio econômico e social no Brasil.¨
Goulart seria a última pessoa de quem Sarita esperava uma reação:
¨Houve uma combinação de erros e contratempos. No dia 13, Goulart fez um comício radical na Central do Brasil; antes, quando os marujos rebeldes se concentraram no Palácio do Aço, na sede do sindicato dos metalúrgicos, e receberam a adesão do destacamento de fuzileiros navais que se dirigia lá para prendê-los, posicionou-se a favor deles, os subalternos. Ontem, compareceu ao Automóvel Clube do Rio de Janeiro onde discursou até Cabo Anselmo, líder dos marinheiros. O que é que ele queria? Goulart não foi pego de surpresa e sabe que não tem como confrontar esta situação, pelo menos, de modo militar. O ministro San Tiago Dantas e Juscelino Kubitschek o haviam informado que uma frota americana estava a caminho da costa do Espírito Santo, para o possível apoio ao golpe, que os Estados Unidos se dispunham a reconhecer o governo paralelo que os sublevados de Minas iam formar e, até, interviriam militarmente, se necessário. Ele sabe que já está deposto, derrotado, e não se trata de interpretação nem de posição pessoal, minha, jovem companheiro, é a História que fala ou melhor, o materialismo histórico¨, respondeu-lhe Sarita, ¨estão tomando o poder na nossa cara e ninguém faz nada. Cadê a revolução? Se nós, eu e você soubéssemos em que direção se moveriam as relações sociais, devido a determinadas alterações no processo de produção econômico ou social, havidas no Brasil nos últimos anos, saberíamos em que direção se moveriam as pessoas, a mentalidade política e, conseqüentemente, estaríamos aptos a influenciá-las. Ou seja, influenciar a mentalidade social significa o mesmo que influenciar e criar eventos históricos; em certo sentido, eu ou você podemos fazer história, não precisamos esperar enquanto ela for se fazendo. Entendeu? Quem sabe, faz!”, disse, recusando-se a fazer concessões ao seu próprio raciocínio”.
Nem assim o nordestino entendeu, mas, posta a água a ferver, com um jeito direto, claro e simples, opinando e palpitando, falando em cima de questões abstratas ou das concretas, que ninguém queria ver, ela voltou à sala e à conversa, toda animada, encarando a realidade com a maior facilidade:
¨Nós pouco podemos fazer¨, e Sarita interpretava com gestos o que queria dizer, comunicava-se por inteira, falava também com as mãos, gesticulava em cada frase a ênfase, às vezes com movimentos fortes, o punho fechado, as palavras que queria frisar lembrava um locutor da Rádio Cabugy, de Natal, e assim conseguira sua total atenção:
¨A particularidade do momento atual é que o país está passando de um estágio para outro e os fatos se inter-relacionam, porém, o fundamento da nossa ação continua sendo o mesmo, para nós, comunistas brasileiros, é o fim do imperialismo, do capitalismo, conseqüentemente, nosso referencial maior e uma questão de consciência. Mesmo que estejamos acomodados há anos, fazendo uma aliança aqui, outra ali, agora, quando deveríamos estar nas ruas lutando contra este golpe de estado que o imperialismo está a nos impor, o que vemos? O quanto estamos fragmentados e dispersos, sem nada poder fazer. Aliás, todos estão nesta mesma situação. O que o Partido realmente fez por Goulart, além de ajudar na campanha pela volta do presidencialismo? Eu mesma fui checar e vi que a comunicação no governo é desorganizada, não há armas para ninguém, para as Ligas ou os sindicatos, e também não há um esquema preparado para enfrentar o golpe, do qual todos falam há meses. Há quem defenda a resistência? Pois, o que sobrou foi nosso esquema de sustentação, que é muito precário, embora ainda funcione¨.
Era tarde, de fato, para se preparar qualquer reação. Pego desprevenido e desorganizado, de um jeito ou outro o Partido teria que confrontar a realidade:
¨A questão básica é que estão executando o planejado¨, interrompeu o dirigente, ¨Goulart não tem meios de resistir, se optar por este caminho, será uma guerra civil, sem a menor chance de êxito¨.
À chegada de Humberto, não havia dúvidas de que estava perturbado, tiveram que interromper a conversa.
...
Leia amanhã o Capítulo XXXVIII
Jornalista, escritor e poeta norte-rio-grandense
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