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comTEXTO : 31 de Março, 1964

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31 de Março, 1964
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01/11/2005- Talvani Guedes da Fonseca



CAPÍTULO XLIII

Temendo que Sarita risse da sua insuficiente e limitada preparação, da sua ignorância, para desviar a atenção foi logo dizendo que não era nenhum intelectual, que não sabia nada em demasia, mas achava ter o necessário, o suficiente para passar adiante e ensinar as pessoas a pensar sobre o perigo permanente da guerra nuclear, o medo de que o susto do bloqueio à Cuba se repetisse e acontecesse uma tragédia:

¨Essa discussão de vocês requer mais do que raciocínio, informação, até pouco tempo eu era um nefelibata puro, todo idealista, como qualquer menino de cidade pequena, eu levava uma existência romântica e, de repente, em um passe de mágica, não me encaixei mais nos padrões e conceitos rígidos dos irmãos maristas, comecei a causar problemas, a protestar contra as orações obrigatórias diárias, na terceira aula, pelas almas sofredoras atrás da “cortina de ferro”. Resultado, fui expulso do colégio...“

¨Sabido, ele, não?¨, brincou Sarita, ¨foi quando se tornou comunista¨?

¨Eu sabia pouco ou nada de comunismo, por isso, a transição que passei foi curiosa; eu acho que me tornei comunista por raiva de padre, não, estou brincando, foi quando tive idade para entender as coisas por conta própria, motivado pela justiça, depois do que aconteceu comigo quando era criança numas férias que passei na fazenda de um tio, isso e mais o colégio católico foi o começo de mudanças na minha evolução política e emocional. Embora eu vivesse muito tempo num mundo de fantasia, dos heróis das revistas em quadrinhos e dos seriados das matinês de domingo, Tarzan, Durango Kid, Kyowa, sempre destoei intelectualmente e estive acima da média dos meus amigos, dos meus colegas de classe, e desde o início da minha vida tive afinidades com quem é do contra e com o passar dos anos fui vendo que as pessoas não eram como eram por terem nascido desse ou daquele jeito ou naquele berço nem por determinismo, mas que, se nós lutássemos contra a exploração, tudo aquilo poderia mudar. Sempre me identifiquei com o povo, com o modo como vive. Pelo menos fiz o que acreditava e achava certo, eu queria mudar o mundo e o marxismo mostrava o que estava por baixo das aparências, como o mundo funciona, como e porque as coisas acontecem¨.

¨Como assim? Estou interessada. Você já leu “A educação sentimental”, de Gustav Flaubert?¨, interpelou-o Sarita, que parecia ser a pessoa mais interessada em seu relato.

“Precisa ler! Não se esqueça: arte, política e história andam juntas¨.

¨Meu engajamento político começou antes¨, continuou o nordestino, disposto a levar a conversa até o fim, ¨eu confesso que rompi, fiquei com ódio, aos doze anos com a igreja, a religião, e foi exatamente quando diziam que João XXIII renovava entre aspas, foi quando comecei a despertar para a compreensão do mundo, a deixar muitos mitos de lado, foi quando mandei o santo padre, a sacristia, os bispos, tudo à puta que pariu, passei a reagir contra tudo o que fosse patrão, injustiça, e fiz isso lendo e me dedicando, aderia àqueles que eram do contra e viviam à margem, no colégio, no meu bairro. Sempre tive um profundo desprezo pela autoridade, ainda mais, depois de ser expulso do colégio marista. Não tinha quinze anos e já fazia propaganda na campanha pelo monopólio estatal do petróleo, e pleno Grande Ponto, a Cinelândia de Natal, no comitê do Prefeito Djalma, e ao ver as reportagens sobre Fidel e a guerrilha, então!

Ouvindo-o abrir a sua mente, Sarita exclamou:

¨É lindo ver um jovem tentar eliminar as suas limitações, aprimorar as convicções! Esta é uma geração de gente jovem, com muito talento¨.

¨Ah! Me tornei um simpatizante depois que fotografei e acompanhei a greve dos soldados da polícia militar, o quartel era quase de frente para a casa da minha mãe, e foi aí, já na União da Juventude Comunista, que fiz o curso Princípios Fundamentais de Filosofia, de Georges Politzer, com quem tive as primeiras noções dessa nova visão do mundo, que estudei o materialismo histórico, marxismo, socialismo, foi com ele que aprendi ser possível aplicar a ditadura do proletariado aqui, no Brasil. O marxismo resumiu para mim tudo o que eu sentia e termos de justiça, e, depois que aboli d(eu)s e a religião, adquiri uma fé brutal no processo histórico, não sou mais religioso; depois, logo em seguida comecei a aprender e a entender o funcionamento, as deficiências da sociedade, os males diários que o capitalismo provoca no caráter, na formação do ser humano, pela falta da ética. Os livros que li? Meus livros eram a vida mesmo. Sempre vi a fome, o analfabetismo, e em tudo o que vivi desde pequeno fui descobrindo, pondo minhas idéias, aprendi como formar e ajudei a fundar sindicatos rurais em Cerro-Corá, Angicos, São José de Mipibu, participei da invasão do engenho do pai de um amigo meu, e, Mirim, expulso do Marista, pelas mãos da Juventude Comunista, entrei direto na política estudantil, mas eu acho que aprendi pela observação, tudo o que eu quis e fiz tive que buscar, e tem mais: nunca pedi para entrar nessa luta. A verdade é que eu era e ainda sou ignorante, não sabia de nada. Como sempre procuro alguma coisa que possa embasar teoricamente minhas idéias, precisei entrar e com algumas leituras, nem sempre digeridas adequadamente, eis a verdade, e as idéias sobre o que é justiça social, o socialismo, aprendi que não poderia viver comigo mesmo se não fizesse nada, sem fazer a minha parte. Senti necessidade de assumir uma posição política definida, sem nunca ter tido, nem tenho ambição política pessoal¨.

¨Nossa vez chegará, companheiro¨, e inquiriu Humberto:

¨Você sabia que Georges Politzer foi fuzilado na ocupação da França, pela Gestapo?¨

¨Não, dele só conheço o curso que o Partido deu¨.

¨Qual foi o curso que o Partido lhe deu em Natal?¨, o dirigente indagou.

¨O do livro Princípios Fundamentais de Filosofia¨.

¨É, Politzer é uma boa leitura filosófica do marxismo, jamais separou a ação do pensamento e morreu como herói. Esse seu curso de materialismo dialético, em vinte e quatro lições, com a máxima clareza e simplicidade, foi dado na Universidade Nova de Paris e publicado em livro. É a melhor maneira de conhecer o marxismo, como método de reflexão sobre a realidade e como instrumento para a sua transformação. Ele dizia que a história mostra que o tempo não passa sem deixar marca, que o mundo, a natureza, a sociedade constituem um desenvolvimento que é histórico”.

¨Nós também lemos e estudamos Princípios Fundamentais do Marxismo, de Georgi Plekhanov¨.

¨Meu curso predileto¨, interrompeu Sarita, e citou de cor um trecho do livro de uma das mais importantes figuras do movimento trabalhista russo, anterior à Revolução e um dos teóricos de maior destaque do Marxismo ortodoxo, do livro O Papel do Indivíduo na História, publicado em 1898:

¨Quem faz história? O homem social, que é o seu único fator, que cria as suas próprias relações sociais, mas, se em dado momento ele criar certas relações e não outras, é óbvio que haverá para isso uma razão, determinada pelo estado das suas forças produtivas, porque as relações sociais têm a sua lógica inerente: enquanto viverem pensarão e agirão de determinada maneira e não de outra. Resultarão de infrutíferas todas as tentativas por parte dos homens públicos para combater esta lógica; o curso natural das coisas, a lógica das relações sociais, anularia todos os seus esforços. Mas se eu souber em que direção se movem as relações sociais devido a determinadas alterações no processo de produção econômico-social, saberei também em que direção se move a mentalidade social; conseqüentemente estarei apto a influenciá-la. Influenciar a mentalidade social significa influenciar eventos históricos. Por isso, em certo sentido, eu posso fazer história, e não preciso esperar enquanto ela se vai fazendo, ou seja, é o Homem quem faz a História, e isso quem diz é Georgi Plekhanov, companheiros¨.

¨E Plekhanov também disse¨, acrescentou o dirigente, citando Bismarck, ¨que nós não podemos fazer história e que temos de esperar enquanto ela se vai fazendo, e que mesmo os denominados grandes homens não podem contrariar tendências, mas que devem entendê-las e conduzi-las da melhor forma¨.

¨E de Lenine, companheirinho, o que você leu, hein?!¨

Pelo uso do termo diminutivo, Sarita revelava outra face, a de mulher forte e determinada, além de desejável, carinhosa.

¨Por enquanto, não li porque não achei nada. Li, de Karl Marx e Friedrich Engels, o Manifesto do Partido Comunista, trago-o escondido comigo, está aqui”.

¨Leal! Vai pegar, trás aqui, vai, que eu vou te mostrar que nem tudo o que é sólido se desmancha no ar¨, disse e não mudou de assunto, ele ouvia-a fascinado:

¨Ainda ontem, acabei de ler As teses de Abril de 1917, um dos seus livros mais didáticos, onde ele prega a necessidade que todo o poder do Estado passe aos Sovietes de deputados operários e mostra, item por item, o caminho para chegar ao poder, os bolcheviques, não com uma república parlamentar, porque retornar à uma república parlamentar a partir dos Sovietes seria dar um passo atrás, sim com uma república soviética, de deputados operários e camponeses, em todo o país, de alto abaixo¨.

...

Leia amanhã o Capítulo XLIV

Jornalista, escritor e poeta norte-rio-grandense

  

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