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comTEXTO : 31 de Março, 1964

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31 de Março, 1964
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O dia do golpe
27/10/2005- Talvani Guedes da Fonseca



CAPÍTULO XXXVIII

O dirigente vinha de uma família de intelectuais, ingressara no Partido ainda universitário.

Sua vida girava em torno da sua grande influência na comunidade acadêmica onde se dizia tudo dele, chegava a ser um mito, daí as centenas de admiradores. Principalmente, ele era uma inspiração para todos, um modelo a ser seguido, por sua competência, o fato de ser um dos melhores intérpretes do marxismo, um mestre da sabedoria, muito respeitado, com alto grau de atividade, alcançara grande prestígio na comunidade de esquerda, era admirado no Partido inteiro, representava tudo o que admirava, mas tamanha importância nada significava.

Por representar uma nova concepção de revolucionário, cerebral, estava perto de atingir o status de lenda, desempenhando papel proeminente no Partido, representando-o nos meios acadêmicos e universitário, onde aparecia sempre bem vestido. Seu nome se escondia atrás de tudo o que significava e dizia respeito à reforma universitária e nessa área, nada escapava à sua lógica de mentor invariavelmente equilibrado, o tipo especial de pessoa, dessas que se preocupam com os outros, que dão sempre mais do que pensam, que parecem ver tudo e o todo antes de todos.

Era um homem que compreendia sem jamais querer impor nada, seus valores, bem conhecido no Rio de Janeiro, onde constituía a cúpula do Comitê Estadual no Sudeste, e desfrutava de reputação excelente, principalmente entre os jovens que o tinham como visionário, o militante que todos gostariam de ser, favorito da Juventude em todo o país. Uma das afirmações mais simples do que era a práxis, exemplo modelar de revolucionário, ao menos para ele, distinguia-se com desenvoltura não pelo saber, mas por ter algo diferente das outras pessoas, e o nordestino conhecia o tipo muito bem, tivera um professor assim no Colégio Marista, bem ao estilo, por acaso um espanhol, também do país basco, o bom o Irmão Julião, a quem em certas atitudes, gestos, maneira de rir, perturbadoramente semelhante, o dirigente lembrava essa pessoa de batina que muito o impressionara e que, como ele, dona de grande habilidade para conduzir, baseando tudo em profundo conhecimento teórico, sem nunca reduzir nada ao menor denominador comum, preso a um tipo de raciocínio que ia sempre do geral para o particular.

Assemelhavam-se surpreendentemente.

Como Irmão Julião, o dirigente refletia nos menores movimentos a paz interior de quem sabia fazer as pessoas ouvir, também era inimigo das opiniões preconcebidas e se em geral não demonstrava suas emoções, por ser essencialmente homem de diálogo, sensível, altamente compreensivo, assumia com perfeição o papel de revolucionário, como verdadeiro exemplo e uma inspiração.

¨A época me deixou assim¨, disse com entonação tranqüila, ao resumir sua história.

Abandonara a família e o emprego para devotar-se à idéia socialista, a única coisa que o fazia viver, contribuir com sua luta pessoal para acabar com o capitalismo; luta à qual dedicava tempo integral e quase toda a sua energia. Comprometera-se pela vida toda com o Partido e desde que começou a relaxar nos compromissos com o escritório de arquitetura, vinha se empenhando na sua organização, no preparo teórico das bases universitárias, quando possível estendia sua ação aos secundaristas, e foi assim que, muito antes de conhecê-lo, o nordestino passou a imaginar como seria seu ídolo, que por seu carisma se encaixava na imagem de revolucionário que ele tinha, do militante que todos gostariam de ser, sempre disposto, representando tudo o que ele admirava, e no entanto, era gente simples que nem ele.

Ali existia uma irmandade.

Silenciosamente, o dirigente foi até à cozinha e de lá trouxe uma garrafa de Grapete. Ofereceu-a ao contato, que parecia desmotivado, distante e misterioso. Com uma expressão pálida, melancólica, acocorara-se num canto e chorava quando foi perguntado sobre o que havia:

¨O que foi, companheiro?¨

¨É que não posso ir com vocês, tenho que ficar¨.

¨Tudo bem, não tem problema. Eu sei que você está chateado. Há alguma coisa que eu possa fazer?¨, e, impondo sua imagem de absoluta respeitabilidade, continuou:

¨Como você sabe, Humberto, não tenho mais nenhum problema quanto a isso; está é a minha vida, é tudo o que eu tenho e você sabe que eu sou um profissional da revolução socialista, e isto me honra, mas, os problemas que estão postos aqui, corretos ou não, são meus; inclusive, os seus, pessoais...”

¨Aconteceu uma coisa muito ruim, minha mãe¨.

Caminhou silencioso, um pouco tímido, até a janela, seu rosto era de uma tristeza contagiante, não tinha expressão, no entanto o olhar não demonstrava medo.

Deu vazão ao que sentia:

¨Aconteceu alguma coisa com ela, ligou um amigo meu, em pânico, e ele disse que ela vai morrer, se eu sair de junto dela¨.

¨Coração de mãe não se engana, não se preocupe que nós já cuidamos disso, há um lugar mais perto para você ir. Lembra do que discutimos outro dia, de Marx, que a liberdade é a consciência da necessidade? Pois é, devemos analisar primeiro com bom senso, antes de fazer, e não se preocupe conosco, trate de cuidar do seu problema, antes¨.

Tentando consolá-lo, dar-lhe ânimo, mas antes de tudo se comportando como amiga, afetuosamente, com carinho, ajoelhando-se ao lado de Humberto, manhosamente e com voz serena, agradável, evidentemente para fugir do tema, mudar a conversa, disse Sarita:

¨Aqui se dá exatamente o contrário da lógica revolucionária, Humberto. Em geral os mais velhos são mais fechados às mudanças, somente nós, mais modernos, não precisamos de análise nem de lógica, só aderimos, sem maiores problemas¨.

¨Obrigado pelo apoio moral, companheira!¨

¨Você sabe que estou brincando, Humberto! Talvez você deva realmente ficar! Se todos estão saindo, quem ficará para reestruturar e reorganizar nosso trabalho? Será uma grandiosa e nobre tarefa¨.

¨É, eu pensei nisso também¨, disse o dirigente enquanto passava taças de vinho à ela e ao nordestino, e deu em primeira mão uma boa notícia:
¨Já que não vão ser mais úteis para nós, essas taças, esses copos, os pratos, as xícaras e as cadeiras, esta mesinha, tudo isso é presente meu e da Sarita! Afinal, precisávamos de um pretexto para que o caminhão da firma viesse aqui sem chamar atenção e, ah! A propósito, já avisei ao porteiro que durante a madrugada o caminhão voltará¨.

Reservado, meditativo, o contato mal tocou na Grapete.

Mais quieto recolhera-se em si mesmo, entrara no saco de dormir e serenamente entregara-se ao sono, deixando no ar a sensação de ter saído de um pesadelo, após ser informado de que alguém viria ao amanhecer para levá-lo à casa de campo de um arquiteto, amigo do dirigente, alguém do seu sistema de apoio pessoal, não do Partido, onde poderia ficar o tempo que quisesse, até tudo se acalmar:

¨Desde ontem esperávamos resolver isso e a essa altura, sua mãe já foi avisada de que você estará por perto¨.

Por volta das vinte horas, um grito doloroso, dilacerante como um horripilante rugido de fera ferida, quebrou o silêncio da noite e com um mau pressentimento, o nordestino correu para a janela, acompanhou-o o dirigente:

¨Que é que você acha que foi?¨

¨Não sei, mas se veio do Bloco C, foi da casa de Seu Alberto¨.

¨O que teria acontecido?¨

¨Ele tem uma filha, talvez alguém tenha ligado do hospital com uma notícia ruim e ela atendeu¨.

¨Será que ele morreu?¨, indagou Sara.

De repente, o prédio ficou na escuridão e tristeza, ouviu-se outro grito, quase inaudível, dessa vez, de homem e era Chico, o porteiro, que, em sinal de respeito, numa última homenagem, desligara a casa de força e depois desse gesto ninguém precisou mais verificar a razão nem do primeiro nem do outro grito, pois houve em todo o conjunto muito mais do que um minuto de silêncio, um silencioso pânico uniu a todos em luto.

E de nada adiantava chorar.

O Bloco “A” ficou silencioso, também lá devem ter entendido os gritos, aos poucos as luzes foram se apagando, eram as pessoas dando adeus ao gaúcho, e como sempre, o nordestino guardaria para si mesmo a dor sentida.

...

Leia amanhã o Capítulo XXXIX

Jornalista, escritor e poeta norte-rio-grandense

  

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