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Críticas Construtivas Se todo governante quer, por quê não?!!!

comTEXTO : 31 de Março, 1964

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31 de Março, 1964
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O dia do golpe
25/10/2005- Talvani Guedes da Fonseca



CAPÍTULO XXXVI

A viagem ao Estácio, o cansaço e o vinho começavam a cobrar seu preço.

Extremamente concentrado, apreensivo, sentindo-se um pouco frágil, ao caminhar para o Conjunto estranhou muito o silêncio, as pessoas, e ao passar na portaria do Bloco C viu, tímido, em seu jeito recluso, contido, com seu estilo particular, bem nordestino de falar sem palavras, em geral absorvendo tudo sem se abalar, com uma expressiva expressão de tristeza, mostrando abatimento, “seu” Chico, o porteiro, que, ao olhá-lo, foi como se o informasse de que o velho gaúcho ia mal.

Chico levava uma vida simples, morava num quartinho da cobertura, sob o barulho e ao lado da casa de força e apesar de terem valores bem diversos, ele e seu Alberto eram muito unidos e talvez ninguém sofresse tanto quanto ele com a internação, além, é claro, dos familiares.

Identificava-se com ele, o conterrâneo.

Para sua surpresa, ao chegar no apartamento havia, arrumadas no meio da sala, quatro cadeiras de praia, um colchonete, dois travesseiros, dois lençóis e uma mala, ajeitados num canto.

Indo até à cozinha, deixou as sacolas com os mantimentos sobre a pia e procurou Humberto, o contato, que aparentemente havia saído, embora o saco de dormir continuasse dobrado, com um livro em cima, título em francês, ¨Qui faire?¨, de Lenine, bem à vista.

Percebeu que num dos quartos alguém falava, a voz era de mulher e, ao perceber sua chegada, vindo lá de dentro, o dirigente apareceu e falou:

¨Fui ao ponto, peguei dinheiro, documentos, essa mala, mais pilhas para o rádio, esse macacão que estou vestido, tudo o que vou precisar¨.

Vestia um macacão de carregador de empresa de mudanças e olhou para os lados como que à procurar Desdêmona e, revelando sua grande habilidade de desinibir o outro, perguntou o que aconteceu:

¨Você está com uma cara péssima!¨, exclamou, dando-lhe um abraço emotivo.

“Onde está ela? Você quer falar do que aconteceu?¨

¨Não é assunto seu, companheiro, é meu, só posso dizer uma coisa, que não agüento mais ela¨.

¨É, as pessoas decepcionam, nada nem ninguém é o que parece. Bom, não é dia para se falar de coisas tristes. Nada me surpreende; as coisas e as pessoas não são realmente como se espera, mas vamos em frente, o que interessa somos nós e temos muito a fazer¨.

Ao experimentar uma das cadeiras, ouviu passos de alguém se mexendo lá por dentro, próximo da sala, talvez na cozinha.

O dirigente quis puxar assunto, comentou, mas foi cortado, que devia ser difícil falar no assunto Desdêmona.

Era difícil desabafar.

Com inteligência e muito senso de humor, o dirigente insistia:

¨O único remédio é o tempo, não sei o que houve, mas eu acho que ela só tentou uma saída infeliz¨:

¨Não, não foi nada disso não. Foi assim...¨, e resumiu numa frase:

¨Ela me usou, mas estou bem agora ¨.

¨Isso quer dizer que não ousastes apostar a alma na honestidade dela, não é? Não se preocupe, companheiro, tudo isso que está acontecendo é verdadeiramente o reflexo desse dia; e tudo muda depois deste dia¨.

E acrescentou: “Foi a primeira Desdêmona desonesta que conheci”.

¨Muito mais do que você imagina. Fiquei danado da vida!¨

¨Como foi o encontro?¨, insistiu, pela última vez:

¨Uma merda!¨

¨Você e ela se davam bem?¨

¨Ela nunca existiu! Vamos mudar de assunto? Esse é só nosso, meu e dela, particular¨.

¨Desculpe¨.

´Não se desculpe, por favor¨.

¨Paixão é isso mesmo, companheiro, dor e sofrimento; eis a fragilidade do amor mundano, da qual falou mestre Eça¨.

¨Vai ver que não era isso, só tesão; vai ver, eu só queria comer ela...¨

¨De qualquer modo, desejo não é nada mais do que uma paixão futura, e isso são outras histórias, vamos examinar um problema de cada vez. A pior parte do sofrimento é não saber; use, portanto, a inteligência do coração. A propósito, já leu Saint-Exupéry?¨

¨Só Correio do Sul; Pequeno Príncipe, não¨, respondeu, e fez-se a luz nesse momento, ao sair da cozinha e entrar na sala a presença forte de uma jovem, cerca de 25, 28 anos, de uma beleza caucasiana, cabelos ruivos de um loiro rosado, e era linda, de uma sensualidade nata, sutil, exalava sexualidade, nos menores gestos.

No começo foi muito difícil conter a emoção.

Pela primeira vez, teve inveja do dirigente.

Era impossível desviar o olhar daquele lindo rosto, brilhante e rosado.

Sentia-se um pouco louco com tanta coisa num só dia e apesar do efeito da bebida, achava ter se apaixonado pela simpática personalidade que se destacava, brilhante, atraente, encantadora, de ar enigmático e inteligente que causara impressão, agradara-o infinitamente.

Era além do que sonhara como mulher.

Estranhamente, sentia-a ao seu alcance.

Apresentou-a o dirigente como Sarita, colega desenhista e projetista.

Não a disse companheira, talvez a sua mais próxima no Partido, porque poderia ser mais do que isso, amante, coisa comum no Rio de Janeiro, porém, mesmo que excluísse essa obviedade comprometedora de um relacionamento íntimo, o envolvimento dos dois evidentemente ia além do trabalho, família.

De qualquer modo, poderiam ser a combinação perfeita.

Estava totalmente dependente dela e suas emoções não eram forçadas, de jeito nenhum.

Realmente uma mulher extraordinária, eloqüente, direta, pela forma como o olhava, com interesse, acentuava em tudo o desejo, e bastou um leve e delicado toque sensual em seu braço, para ele entrar no seu ritmo fértil e sedutor. Se já lhe conquistara a afeição, a intensa Sarita começara a flertar com ele, numa sua sutil busca de prazer, inconfessa, e num segundo ela o fez esquecer Desdêmona, de vez, mas, se logo de início ficara impressionado com sua presença e muita personalidade, com seu jeito alheio de desligar-se do que se passava à sua volta, devia pôr a ambição de lado e se comportar, como se não soubesse ou suspeitasse do que de sexo havia ou houve entre eles, e, se houvera, teria que dominar seus desejos e necessidades, esquecer de que estava à sua frente a mulher mais extremamente desejável que já vira no Rio de Janeiro e, talvez, na vida. Numa espécie de intimidade aberta, ela e o dirigente se entendiam só com os olhos, e eram ambos cuidadosos em não mostrar os sentimentos, se é que havia, insistia consigo mesmo, ciente de que não havia tempo para reflexão, só desejo, disposto a não desperdiçar nada, nem uma furtiva olhada no flerte iniciado, que se tornava claro.

¨Este é meu ´ponto`, a pessoa que fui encontrar¨, disse o dirigente, e pelo sorriso maroto nos lábios implicitamente denunciou-se como namorado dela e apesar de estar tudo contra eles, sorriam. No rosto, nos olhos, duas centelhas reluzentes de um azul turquesa, no sorriso lindo Sarita transmitia alegria e muita energia:

¨Você fez compras para um mês, companheiro¨, disse ela.

¨Ah! Ele é nordestino¨, interferiu o dirigente, agitando-se.

¨Seu vizinho do lado é de confiança, o telefone dele nós podemos usar, muitas pessoas já estão fazendo isso, como o companheiro Humberto, que, por sinal, anda muito deprimido; ele foi lá agora, para telefonar. Você também pode usar, se quiser; deixei o seu nome com o vizinho e a mulher dele¨.

Abrindo um pacote retirado de uma sacola, Sarita passou um revólver e documentos ao dirigente, que ao receber, observou:

¨Não se preocupe, eu nunca chego a extremos, é que vamos fazer uma viagem e na estrada é muito perigoso¨.

¨Você usará, se for preciso?¨, perguntou, e o dirigente fez um muxoxo.

¨Nós vamos viajar?¨, insistiu.

¨Nós; você, não; ficas aqui. Hoje, uma das primeiras tarefas da Sarita foi descobrir quantos de nós havíamos restado e agora já sabemos que prenderam muitos companheiros nossos e ela está aqui justamente para afinarmos os detalhes e traçarmos um painel da situação¨, explicava, enquanto examinava os papéis, e ela disse:

¨Não é preciso entrar em pânico, quem sair hoje da cidade, sai bem, em tempo. O golpe não afetou a vida da cidade e nem a ordem pública nem a vida do país foram alteradas, ainda; nem as instituições, o país não se encontra e estado de paralisia, tudo ainda funciona e só aqui e em meia dúzia de cidades a greve parou, e, assim mesmo, somente no setor de transportes. Quando eu vinha para cá averigüei e vi que vários colégios estão funcionando normalmente. Tenhamos calma, gente, nós sabemos muito bem, a pior repressão, as perseguições só começarão na medida em que os primeiros fascistas começarem a se beneficiar, a se aproveitar do golpe, se aboletando no poder; depois é que surgirão as listas negras, dos indesejáveis¨.

Havia algo em sua abordagem que era novo, novas visões e pontos de vista. Sarah não parava de falar:

¨O instante é de excitação política, já ouvi até um político falar em convocação de eleições, mas dessa vez não serão os políticos que irão para o poder, serão os tenentes, aqueles mesmos que vieram do exílio em 1930 para unirem-se a Vargas, e que continuam aí, só que dessa vez eles são a chave que vai mudar o destino do país e os políticos servirão no máximo como massa de apoio. Dessa vez os políticos não poderão levar todo o crédito¨, observou, com surpreendente clareza, ¨a Revolução de 1930 foi a união de políticos e tenentes que, derrotados nas eleições, decidiram pôr fim ao sistema oligárquico, através das armas, mas o tenente deixou de ser soldado, agora, é político e logo vocês vão ver que esse impulso de mobilização se alastrou por todo o país simultaneamente, e que não foi um fenômeno político, já atingiu um ponto crítico, um golpe que se concretiza, de qualquer maneira, porque tinha que acontecer¨.

¨Há anos a direita articulava esse golpe¨, observou Sarita, ¨foram várias as tentativas, começando pela de impugnação da eleição de Vargas, em 1951, depois a pressão para depô-lo, em 1954, golpe que só foi sustado pelo suicídio; a tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek, em 1955, os levantes de oficiais da FAB em 1956, em Jacarecanga, e em 1959, em Aragarças, e por fim o veto para Goulart não assumir, e 1961 quando Jânio renunciou. Os militares têm a localização exata de Goulart¨, acrescentou, pensativa, ¨se quisessem prendê-lo ou matá-lo já o teriam feito, e ele sabe disso, como sabe que qualquer esforço que fizer será inútil, vai acabar acatando a decisão dos generais¨.

Os comentários e idéias, repletos de detalhes, da confiante e persuasiva Sarita, faziam sentido:

¨Não vamos nos torturar, gente! Pelo que sabemos, não existe a menor possibilidade de salvar esse governo, e esse movimento não é em favor do conjunto de interesses da classe política, no entanto nós sabemos que os militares não são os atores principais dessa farsa, desse embuste, e quem sabe exatamente o que vai acontecer são os Estados Unidos, que têm prática e sabem como derrubar governos; acho que devemos sair daqui e mesmo que tenhamos de redobrar os cuidados em campo aberto, devemos sair já, agora, nossa sobrevivência vai depender da nossa habilidade em saber sumir. Eu, que vou aonde a razão e o instinto me guiam, já decidi: vou fugir, não quero ficar que nem nosso pessoal, que está se encontrando por aí em igrejas, cinemas, bares e em encontros secundários, como este, nada garantido. Aqui ninguém me conhece, mas seguro morreu de velho. Vamos, e, como diria uma das suas filhas gêmeas, a menor, na estrada vai ser legal!¨.

¨Você nunca foi militar?¨, perguntou o nordestino ao dirigente, vendo-o examinar o Taurus calibre 38, e ele, rindo, bateu na madeira da porta:

¨Eu!? Um pacifista? Sou um homem de paz, jamais seria militar!¨

Aprontavam-se para ir embora, usando identidades falsas com fotos e nomes diferentes, porque estariam perdidos, se as verdadeiras fossem reveladas.

¨Não temos opção. Vamos no caminhão da empresa de um amigo, será uma viagem tranqüila na estrada, sem deixar rastros, até descobrirmos um meio de nos salvar e ao Partido¨, disse, ¨gostaria de ter tempo para lhe explicar tudo, mas não vai dar.¨

Como saber se era seguro começar a viagem?

Naquele momento, pressentida mais uma perda, ele pensou algo bom, confortador, que se não fosse pelo Partido Comunista Brasileiro, nunca teria conhecido o dirigente, Humberto e Sarita.

Sentia um grande amor por eles.

...

Leia amanhã o Capítulo XXXVII

Jornalista, escritor e poeta norte-rio-grandense

  

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