capa | atento olhar | busca | de última! | dia-a-dia | entrevista | falooouu
guia oficial do puxa-saco | hoje na história | loterias | mamãe, óia eu aqui | mt cards
poemas & sonetos | releitura | sabor da terra | sbornianews | vi@ email
 
Cuiabá MT, 24/09/2024
comTEXTO | críticas construtivas | curto & grosso | o outro lado da notícia | tá ligado? | tema livre 30.766.468 pageviews  

O Outro Lado Porque tudo tem dois, menos a esfera.

comTEXTO : Acerto de Contas

OUTRAS PUBLICAÇÕES
31 de Março, 1964
Acerto de Contas
Representação fictícia de fatos reais
11/08/2005- Talvani Guedes da Fonseca



CAPÍTULO CLXXIII

Com um nó na garganta, só conseguia lembrar de ¨Muito Romântico¨, a nova e bela canção do poeta Caetano...

...¨não tenho nada com isso/Nem vem falar/Eu não consigo entender/Sua lógica¨...

...¨Você está diferente¨, ela comentou...

...¨O que você esperava, depois de tudo o que passei?¨...

...¨Não sei, mas eu gostaria de conversar, se você não se incomodar. Eu temo não ter sido sempre justa com você, e por isso devo-lhe explicações. Só quero ser sincera. Nem sempre entendi como deve ter sido difícil para você. Queria que você soubesse que eu não queria magoá-lo e que eu não acredito que tudo isto precisava acontecer¨...

...Como ele só ouvisse, ela berrou, nervosa...

...¨Eu tenho outra pessoa!¨...

...¨Eu não a culpo por nada, minha amiga. Você tem os filhos para criar¨...

...Treinara-se para lembrá-la como algo que morrera há muito tempo, para não ter, ao encontrá-la, a esperança de que o passado pudesse voltar...

...¨Deixa pra lá, esse assunto morreu! Eu sou seu passado¨...

...Num rápido diálogo telefônico, um mês e meio antes, quando ligara de Brasília para anunciar que viria ao desembarque de Prestes, ela dissera: ¨Você arruinou nossas vidas!¨...

...Ora, se desde o início ela não acreditava nem nele nem no alemão, por que agora iria acreditar, mesmo diante de inúmeros fatos, consumados? Quantas vezes, nas idas e vindas ao Rio de Janeiro para visitar os filhos, teve que calar diante das indiretas, dela e dos amigos, que insistiam em anunciar a eterna causa perdida da esquerda, a queda do alemão, sempre para breve? Incomodar-se-ia em conversar, sim, sobretudo se não fosse para escutar a mesma ladainha: ¨Se o outro nazista, anti-semita, não caiu, este, que só gosta de cheiro de cavalo, cairá¨...

...¨Não crie esperanças, minha amiga. É pouco provável que isso aconteça. A vida é cheia de surpresas, mas como no dicionário do alemão esta palavra não existia, o mesmo dicionário está servindo ao general de cavalaria. Em seu lugar eu não estaria tão certo disso, não teria tanta certeza¨, disse, antecipando-se para evitar mais uma discussão inócua...

...¨É, mas não há democracia! O povo não vota!¨...

...¨Olha, a chegada do Prestes já é uma democracia. Quatro anos atrás você não acreditaria que, sem dar um tiro, nós conseguiríamos isso! Estão matando muita gente na Argentina, Chile, Uruguai e, aqui, os exilados voltam... pelo aeroporto. Será que vocês não percebem que somos um país diferente? Mais de dez mil pessoas foram mortas ou dadas como desaparecidas na ¨guerra suja¨ da Argentina, isso em apenas quatro anos, a partir do golpe dado por Jorge Videla, em 1975. Aqui, de 1964 para cá, em 15 anos, não mataram duzentas. Será que vocês não vêem a diferença entre os nossos próprios exércitos, a nossa gente? Veja matematicamente, então! Argentina tem 30 milhões de habitantes, nós, 130 milhões. Por que isso acontece?¨...

Ela calou...

...¨Quer saber mais? O Presidente da República, o general de cavalaria que jurou fazer do Brasil uma democracia, encaminhou ao Congresso Nacional uma proposta de reforma partidária. Em dois anos elegeremos governadores¨...

...¨Duvido¨...

...¨Um dos candidatos a governar o Rio de Janeiro é o exilado que os militares mais detestam, o cunhado de Jango, lembra-se dele? Pois é, aquele, o provocador. Se não fosse sua desmesurada ambição, talvez não houvesse golpe militar¨...

...¨Duvido!¨...

...¨Ele vai chegar na semana que vem, entrará por Foz do Iguaçu, vindo do Uruguai, onde tem fazendas¨...

...Se passara os dois últimos anos, de 1976 à 1978, em silêncio, sem querer conversar sobre política nem com ela nem com nenhum dos amigos que a apoiaram, a maioria daquelas pessoas alegres, presente ao desembarque do ¨Cavaleiro da Esperança¨, não seria agora, em plena festa, que iria baixar a guarda. E o adeus foi curto. Decepcionada, ela saiu pelo corredor...

...Ela não queria reconhecer, mas a democracia estava ali, na sua frente...

...O Brasil havia mudado e independentemente da vontade da esquerda, da intelectualidade, da Igreja ou do operariado, de quem quer que fosse, ainda mudaria muito, simplesmente porque, da maneira mais oblíqua possível, algumas pessoas, militares e uns poucos civis, assim o decidiram...

...Diferentemente de todas aquelas pessoas presentes ao desembarque histórico, ele comparecera por um só motivo, pessoal, o de ver a História sendo feita, ao vivo e em cores. Talvez fosse o único ali, a saber, que a volta do velho comunista não mudaria rigorosamente nada. Contra todas as evidências e previsões, em plena ditadura militar quantos ousaram falar em anistia? A esquerda, jamais, pois se conservava distante, à espera da vez...



CAPÍTULO CLXXIV

Pepe dissera-lhe para aguardá-lo às dez horas na faculdade e lá se meteram num táxi, conduzido por um relutante e amedrontado motorista, desde que anunciaram o destino da corrida, a favela de Mãe Luíza, um conglomerado de casas de taipa, a pouca distância dos bairros nobres e de classe média de Natal, e um dos últimos lugares na escala social da cidade onde, na ignorância e miséria, marginalizada por uma sociedade que sempre se baseou na riqueza e no poder, uma imensa maioria de natalenses vivia. Erguida sobre dunas de inusitada beleza, a tão propalada poesia de Mãe Luíza, camuflada nos cartões postais, de perto e in loco, não passava de um insulto aos olhos, nada mais que o bafo quente da umidade lodosa, à noite, a mais sinistra imagem de promiscuidade. Fazia muito calor quando saltaram do táxi no posto de saúde...

...”Que vamos fazer, Pepe?”...

...¨Caminar”, disse e a seguir, indagou: “És asustado? Pués apurate, vamos!¨...

...Na noite morna, com a lua em quarto minguante sob um céu negro e sem estrelas, Pepe acendeu duas pequenas lanternas, pouco maiores que um dedo, e os dois começaram a percorrer à esquerda e à direita labirintos, vielas, seguidos por alvoroçado latido de cães e, após galgar os degraus de uma escada áspera, cheias de pedras soltas, respiravam em meio ao calor abafado, com nojo, o ar mal cheiroso do cheiro penetrante e insuportável de merda e carniça exalado do chão arenoso, escuro, impregnando o ar...

...Apesar de se achar em boa forma, pois nadava todos os dias, mal a caminhada começara, o esgotara. As narinas ardiam e, quase sem fôlego, com a boca seca e o corpo pegajoso de suor, enquanto andava perguntava-se: ¨Onde esse boliviano quer me levar?¨...

...Ofegava de sede atrás de Pepe que, com os pés mergulhados na areia fofa, também parecia que não respirava direito...

...Percorreram em meio à fumaça de folhas secas queimadas mais e mais novos becos até que chegaram num trecho onde mal dava para distinguir os barracos que haviam deixado para trás. Continuavam entrando e saindo de quintais cercados de arame farpado, tomados pelo capim e carrapichos, seguindo os feixes de luz das lanternas made in China, que mal iluminavam os pestilentos monturos de entulhos de lixo...

...Mal atravessaram um descampado, a um assobio de Pepe, num canto escuro uma silhueta oscilou e, saindo das sombras, um homem de cerca de trinta anos, avançou diretamente até eles e, mesmo com o rosto coberto com as mãos, o boliviano o reconheceu...

...Abrindo um sorriso na boca desdentada, com o peito a chiar, quase dando para escutar-lhe a respiração, entrecortada pela batida do coração, fazendo um sinal para que o seguissem, avisando que tinham um longo pedaço a percorrer, o homem sugeriu que tampassem o nariz. Escoltados pelas próprias sombras, lançadas ao chão pelo fraco lusco-fusco dos raios do farol que, ao girar, batia nas copas das árvores, atravessava a folhagem e respingava pedacinhos de gotas de neblina prateada onde pisavam. Embrenharam-se na mata em passos rápidos. Haviam se afastado em mais de meia hora dos limites habitados da favela quando os últimos barracos desapareceram nas trevas. Na vagarosa caminhada, suando em bica, o bater das pernas e dos passos no areal movediço soavam-lhe macios, terrivelmente macios, enquanto dirigiram-se à íngreme e difícil subida, coberta de esparsos espaços de mato rasteiro. Por uma trilha inclinada do pé da encosta atingiram uma área de mato muito grosso. Antes da extenuante subida, assustado com a passagem de pequenos animais, talvez, silenciosa cobra, pediu para parar. Firmou os joelhos cambaleantes para tomar fôlego e escutou o surdo rumor distante da batida de um facão de encontro à madeira seca. Alguém cortava lenha na madrugada, às escondidas...

...¨Batem con un machete¨, disse Pepe, enxugando a fronte e apanhando do chão uma vara para servir-lhe de cajado, que, ao ser enfiada na terra fofa para apoiar-se, quebrou e ele quase caiu...

...Desorientado pela fadiga, suado, ofegante, exausto, com fome, com muita sede e sufocado pelo ar pesado, abafado, arrastava os pés, praticamente sem enxergar nada. Para não tropeçar nos galhos secos, cheios de espinhos, de quando em quando acendia a lanterna.



CAPÍTULO CLXXV

Chegando a uma encosta, contornaram-na até achar uma trilha estreita, pouco freqüentada, sem rastros a qual, mesmo se quisessem, nem ele nem Pepe conseguiriam seguir depois. Guiados pelas estrelas, ocultas acima das nuvens, andaram mais alguns minutos no mais alto nível do morro e, enveredando-se por entre pequenas árvores, retorcidas pelo vento constante, à curta distância de onde estavam ouviram sussurros, murmúrios abafados de vozes. O guia parou e, com golpes de um facão que até ali ocultara dentro da calça, preso à perna, cortou alguns galhos na clareira deserta, recentemente feita, mas engolida completamente pela densa floresta, e fez surgir uma passagem que mal cabia um corpo e pela qual só poderia entrar quem a fizera. Atravessou-a e, atrás de um emaranhado de garranchos secos, sob uma grande árvore copada, sustentada grosseiramente por vigas de maçaranduba e coberta de folhas de compensado, papelão, tábuas, galhos e palha de coqueiro, apareceu a cabana onde se escondia Samuel. Com muito boa vontade, o máximo que dela se poderia dizer era que se tratava de uma tosca proteção contra a chuva, porém a alegria de encontrar o nicaraguense foi grande...

...Mal dava para enxergar Samuel que, com o olhar cravado no breu da mata, uma expressão de sofrimento no rosto, entristecido, sentado no chão em frente à choupana, com o grande sombrero encobrindo-lhe a cabeça, fumava preguiçosamente um purito. Pepe adiantou-se...

...¨Aqui estamos e te traigo el amigo que te dije¨...

...¨É bom te ver, Samuel¨...

...¨Cómo estás? Mejor que yo, desde luego! Estoy contento por vires¨...

...Pôde ter, então, a sensação exata do desterro em que se encontrava o nicaragüense, tomando um susto ao abraçá-lo...

...Com um olhar comovido, mas, pesado pelo brilho vidrado da ¨canabis¨, sem camisa, coberto de pó, sujo como um carvoeiro, a barba crescida sobre um rosto cavado, transformara por completo o seu semblante...

...Pálido, com ar de subnutrido, era uma outra pessoa, muito mais magro do que no derradeiro encontro, tinha a aparência de um homem de mais de trinta anos de idade...

...Abrindo um sorriso de orelha a orelha, Samuel fez um movimento com o polegar, como só ele sabia fazer, e atirou longe uma tampa de garra, pequeno disco voador que zumbiu no espaço e sumiu na escuridão além dos arbustos...

...O suor corria em gotas, mal conseguia respirar, nem com as narinas completamente abertas...

...¨Água! Dá-me um copo d’água!¨...

...Abaixando o volume de um pequeno rádio de pilha, que enchia o ar com um rock-and-roll, disse, em espanhol: ¨Non te preocupes se estoy sujo. Yo estaba a limpiar el terrero. Y entonces, que pasa? Que tal estás, hombre? Que tienes de bueno?¨...

...Arfante, cansado da penosa marcha, quase não conseguia falar...

...¨Procurei-o por toda parte, Samuel¨, disse e sentou-se, exausto, no chão mesmo...

...¨Yo estaba aquí. Ahora, vamos relazar y tomar una pinga¨...

...Era difícil alguém não gostar do nica...

...Descalçando os sapatos sujos de pó escuro, sacudiu a areia que entrara nas meias profusivamente e não demorou a ver que Samuel não ria como de hábito e que o seu sorriso agora era algo forçado, revelador de evidente tristeza. Os dedos tremiam um pouco, talvez por causa da desnutrição...

...¨Fumamos un porro?¨, perguntou, convidando-o a entrar na palhoça...

...Brincando, sempre com uma palavra sorridente na ponta da língua, falou, em tom bem humorado: ¨No soy digno que adentréis en mi morada, pero dices una só palabra y mi alma será salva¨...

...¨Vai te danar, Samuel. Tenho lá cara de padre!¨...

...¨Tienes un poco, si, y estás con un bueno especto¨...

...¨Não dá para dizer o mesmo de ti, Samuel. Por um instante parecia ter voltado ser o Samuel do Djalma. Acesa a lamparina a querosene, de chama quase preta, notou que de vez em quando ele enxotava as moscas que pousavam sobre uma ferida que tinha no braço, do tamanho de uma moeda...

...¨No és nada, foi um pau que me feriu¨...

...¨Mas esse ferimento parece de natureza grave, Samuel. Não sabe que pode dar tétano? É melhor desinfetar isso¨...

...¨Tomé unas pastillas y hago asepsia con una mixtura de semilla, raíces e hierbas medicinales. Ajudan a cicatrizar¨...

À primeira vista, sem eficientes resultados terapêuticos.



CAPÍTULO CLXXVI

Afora o ferimento e o miserável estado do esconderijo, não havia nada de errado com Samuel, a personalidade o fazia atraente, um tipo raro, e era impossível evitar a lembrança da noite em que, com belo senso de humor e maneiras gentis demais para um simples estudante, invadiu o Djalma e esmiuçou-lhe a vida. O único detalhe que permitia certa tranqüilidade era a certeza de que, naquela silenciosa e escondida clareira, ninguém acharia Samuel. Puxou um tamborete, sentou, tragou o purito, que desanuviou o ambiente e encheu o ar do perfume enjoativamente doce da ´canabis´...

...Sob o olhar maroto e curioso do nica, calçando os sapatos e as meias ainda cheias de areia, aproveitou para dizer que não estava ali para exprimir solidariedade e sim ajudar no que fosse preciso. Mostrou a carta, Samuel leu, impassível, e fez um singelo comentário...

...¨Isabelita... Mi hermanita!¨...

...Deu um beijo no envelope, devolveu-o e, de forma comovida, começou a relatar a parte oculta de uma incrível história: ¨Escondi-me neste barraco, pero no soy fugitivo. Contaram-lhe o que aconteceu? Estubo a punto fichar maluco ´y lo sé que aún estoy inquieto, nervioso e lleno de dúvidas. Hoy me pelea con todo mundo! Vendo-me assim, você dirá que acabaram comigo, pero no és verdad. Mi vida está tumultuada, si, pero és por una série de circunstancias inexplicáveis¨...

...Indo para o terreiro, disse Pepe ¨Espero-te aqui¨...

...Samuel falava sem cessar, ora levantava, ora abaixava a voz e em linguagem inteligente e rápida, dissecou a calamidade...

...¨No final del año passado eu e Miguel, uno paraguajito, analisamos amostras colhidas por ele no último ano de residência, de fetos e úteros de dezenas de mulheres. Encontramos em todas uma substância abortiva proibida e uma outra, sem registro. Montamos uma estatística de cinco meses. Todas as mulheres eram daqui, do morro. Alguém andou experimentando nelas alguma droga e um amigo, professor de etnografia dos oceanos, pareceu interessado em analisar o assunto. E foi aí que todo empezó a dar erado¨...

...Fazendo uma pausa, aspirou a liamba e prosseguiu...

...¨Miércoles! Mis huevos! Tu no imaginas el aburrido que pasé! No lo puso creir y, de repente, me di cuenta de que estaba hodido e me puso mucho nervioso! O rolo que deu vou te contar! Una cosa espantosa! Fui chamado à pró-rectoría, ´pero fue una trampa! A mí me trataran muy mal, y sin contemplaciones´. Indagaram-me como consegui as amostras, de quem, apareceram uns americanos do projeto que queriam interrogaram-me. No me puso contento! Este rector és un hijo de la gran puta, me pone los nervios de punta! Tengo el derecho de no hablar, pero, sin embargo, querían levarme a los federales. Pressionaram-me de todos os lados, mas não entreguei Miguel nem aos outros estudantes que acompanhavam as atividades dos gringos e tinham informações sobre outros problemas, como, por exemplo, a adoção de crianças, a maioria de recém-nascidos, envolvendo gente do projeto e uma freira, também gringa. Que hacer?¨...

...Perguntou e apontou para o guia e dono da palhoça...

...¨Aqui está meu amigo Assis, creio que já lhe falei dele, o pintor de quadros. Ele me deu abrigo. Nos conocemos cuando yo llegue a Natal, en la playa´, y nos apreciamos. Nunca nos afastamos. Ele mostrou grande interesse por esta minha desgraça e me abrigou, me escondeu aqui, como una sombra. Sempre vim em Mãe Luíza. Vi muchas gringas nos becos daqui. Elas também me viam, e, como sou semelhante à gente brasileira, jamais se interessaram por mi persona. Creio que elas esperavam que o que faziam ficasse em segredo. Assim, quando uma delas viu que a bronca na universidade era comigo, minha vida virou um inferno¨...

...Dando um murro na própria coxa, rosnou...

...¨Uno costarricense me dijo que le preguntaran se soy cubano. Sou nica!¨



CAPÍTULO CLXXVII

Talvez involuntariamente, o poeta nicaragüense metera-se numa intriga internacional, porque, de fato, os gringos andavam ouriçados e quase não saíam da universidade. Se antes não demonstravam interesse pelos latino-americanos, agora se bronzeavam ao sol do Sebastião e as peças do jogo se mexiam, fazia-se mister visualizar o todo daquela colcha de retalhos...

...Semanas antes Samuel tomara um porre em Areia Preta, houve uma briga no bar alguém roubou-lhe o passaporte e a carteira de identidade estudantil...

...¨Tubo una agarrada com el gringo imbécil, aquel cabrón del jipe, y su amigo maricón... pero, yo estaba mucho tomado. Solo no me mataran a mí porque pasaba a joaninha, a radiopatrulla¨...

...Sem documentos, Samuel disse que não só deixara de ser estrangeiro, como se tornara ninguno...

...Para evitar a universidade, fugiu do Campus e viveu as últimas semanas como pode, na casa de um ou de outro, agora estava num lugar mais protegido, isolado e seguro, escondido no meio da mata, por trás do Morro de Mãe Luíza. Era a primeira vez que via o nica com raiva, e ele explodiu em lágrimas quando começou a contar sua estranha história...

¨Vim ao Brasil porque não tinha mais o que fazer no meu país. Apartado de mi mujer, inscrevi-me na universidade e somente aqui em Natal, ao acompanhar o desenrolar da guerra civil em ´mi país´, comecei a formar idéias, lembrar de coisas, enxergar a ditadura somozista. Cubano? Ni muerda, yo no lo conozco!´...

...De repente, alguém desligou o rádio ou a carga de pilhas acabou pois se fez um pesado silêncio...

...Ouvia-se o ruído do roçar da folhagem, o murmúrio da mata, rumores imperceptíveis que chegavam aos ouvidos, sendo quase possível ouvir os galhos, as folhas e os ramos crescerem...

...Um barulho ritmado como ruflar de asas, depois de um sopro mais forte de vento no topo da árvore sobre a choupana, assustou-os e, de um salto, Samuel ficou de pé à sua frente; por uns segundos olhou para fora, através de uma fresta, encaminhando-se depois à portinhola dos fundos, que dava acesso a um pátio amplo e a um terreiro cheio de entulho, onde terminava a clareira...

...¨Yo lo sé que mi destino es de castigo, si, pero, como vocês dizem aqui, há males que vêm para o bem. Tenho pensado muito em meu país e concluí que devo voltar à Nicarágua. Necessitas ajudar-me¨...

...¨Vou ajudar, sim´...

...¨Quando vinha para cá por esse morro, sabes no que eu pensava? No dia em que te conheci no Djalma, no dia del tiburón? Pensava no seu sonho de ser biólogo¨...

...¨Eu ainda serei biólogo marinho, si. Sabes, yo no soy de palhaçadas, como dicen ustedes, acá. Sabes por que hizo aquella trampa, del Tiburón? En aquella tarde yo me quedava muy triste. Me acuerdava del Lago Managua... el único lago de agua dulce, en todo el mundo que tiene, tiburones¨...

...¨Verdade? Não sabia¨...

...¨Para que tengas idea, no és un lago común, tiene más de ocho mil kilómetros cuadrados, es cercado de volcanes. Los tiburones vienen del Atlántico, adentran por el río San Juan y se adaptan. Precisas conocer los misterios y bellezas nicaragüenses, hermano¨...

...Visivelmente emocionado, Samuel passou as costas das mãos sobre os olhos, enxugando invisíveis lágrimas, falava nostalgicamente da sua Nicarágua, do Lago de Manágua e suas mais de 300 ilhas, da família e de Rúben Darío...

...¨Recité Martí para ti quando nos conocimos, no fué? Sabes por que no recité a Darío? Porque a mí me parecía que nadie lo conocía y muy tampoco imaginaria que alguien ali podría conocer a Martí. Si supiera quién eras tu, recitaría Darío mismo, algo así, más o menos: ´La vida es dura/Amarga y pesa/La vida es dulce y bella/La vida es dulce y seria¨...

...¨Lindos versos. Eu não conhecia¨...

...¨És increíble¨, exclamou o perspicaz nicaragüense, ¨como ustedes ignoran el mayor poeta moderno de latino-américa. Soy nicaragüense, pero me gusta mas a Martí, que dijo, por ejemplo: ´Una pontita de poesía/ Es suficiente para perfumar/Un siglo intero¨...

...¨O que desconheço de Darío é ainda menos do que sei de Martí, Samuel. Sabe por quê? Se não nos ensinam na escola quase nada da América do Sul, da Central, então, não ensinam nada. De Cuba, a gente aprende por devoção. Quase tudo que sei e decorei de Martí, aprendi com um cubano, um engenheiro, que me emprestou a obra completa do poeta, um grosso volume, impresso em papel de casca de arroz. Li El romancero gitano ´El poeta en Nueva York, La Casadera Infiel e outros poemas, deixa ver se me lembro...

...He visto la águila herida/volar al azul sereno/y morir em su guarida/la víbora con su veneno¨...

...¨Mui rico, este poema. Martí también dijo que “la patria es la humanidad”, acrescentou Samuel, e voltou a falar de Darío...

...¨El fue mucho respectado como poeta. Además, fue quién empezó el movimiento de renovación literaria, el modernismo en la poesía en la lengua hispánica. Darío estubo años en Chile, pasó por Argentina e por fim se murió en mi ciudad, en León, en 1916, cuatro años después que los gringos, para protege el monopolio norte-americano en el Canal del Panamá, ocuparan pela primera vez mi país. Darío supo en la carne el dolor de tener su país invadido! Tu no sabe lo que és ser invadido, Hermano¨...

...¨Não sei mesmo, Samuel. Nunca fomos invadidos!¨...

...¨Y espero que no los seas, jamás!¨...



AMANHÃ: CAPÍTULOS CLXXVIII, CLXXIX, CLXXX, CLXXXI, CLXXXII E CLXXXIII


  

Compartilhe: twitter delicious Windows Live MySpace facebook Google digg

  Textos anteriores
09/11/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
08/11/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
07/11/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
06/11/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
05/11/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
04/11/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
03/11/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
02/11/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
01/11/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
31/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
30/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
29/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
28/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
27/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
26/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
25/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
24/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
23/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
22/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
21/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)

Listar todos os textos
 
Editor: Marcos Antonio Moreira
Diretora Executiva: Kelen Marques