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Cuiabá MT, 24/09/2024
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O Outro Lado Porque tudo tem dois, menos a esfera.

comTEXTO : Acerto de Contas

OUTRAS PUBLICAÇÕES
31 de Março, 1964
Acerto de Contas
Representação fictícia de fatos reais
12/08/2005- Talvani Guedes da Fonseca



CAPÍTULO CLXXVIII

A acidentada e infortunada história superou tudo o que imaginara, porém, o que mais o impressionou, e tristemente, foi o sentimento de dever em Samuel...

...Seria impossível abandonar o amigo. Na tentativa de aquietá-lo, resumiu a situação, o novo governo que assumiria, o novo reitor, todo um conjunto de ações politicamente favoráveis à solução do problema. Longe de confortá-lo, apavorou-o e daí passou a buscar intimamente energias que o ajudassem a demover as apreensões do nicaraguense, isolado pelo medo e, mais ainda, assustado com o pesadelo em que se transformara sua vida. Samuel deixou pender a cabeça entre as mãos e falou, bem devagar, algo que soou definitivo...

...¨El Brasil és desde luego demasiado perigloso para mí. Lo que hago, biologia marina, la continuaré haciendola, estea adonde estuvier, mas, suceda o que se suceder comigo, te digo: volveré a Nicarágua, ´hermano... Eso és todo. Y no pienso de cambiar de idea, tengo que ser fuerte porque volveré a Nicarágua! Se mercenários treinados por los Estados Unidos estan matando mi gente, por que devo yo quedarme aqui? Quiero vivir y luchar em mi país, tengo cosas que hacer allá! Tienes que encontrar una salida, hermano¨...

...¨Tem certeza de que é o que você quer?´...

...Puxando-o pelo braço, deixando no ar uma impressão que nada tinha de resignação, Samuel respondeu...

...¨Porque sos mi amigo y mi hermano, prométame que vas me ajudar! Me ponga a mí fuera del Brasil! Eres una persona de quién confió! Ajudame!¨...
...¨Prometo, no estás solo! Yo voy protegerte!¨...

...¨Que bueno oyr su respuesta en español! Gracias! Você me comoveu muito! Mi futuro está en sus manos, por eso yo lo sé que volveré para mí tierra, amigo! Te juro que me voy de vuelta a mí país!¨...

...Extremamente comovido, dava a impressão de que ia chorar...

...¨Y yo quiero que vengas conmigo!¨...

...Estás maluco, Samuel? Sou brasileiro, não nicaragüense!¨...

...Dependuradas num arame esticado entre duas árvores, uma calça e duas camisetas, lavadas não se sabe como, pois água não vira em nenhum lugar, secavam suavemente na brisa mansa da noite abafada. Perguntou a Samuel se não se sentia sozinho, ali, em cima do morro, e ele disse que não...

...¨Onde você toma banho?¨, indagou, curioso...

...¨Desço ao mar, de madrugada, y después de usted irse, iré limpiarme allá¨...

...¨Ótimo, vou junto! Estou coberto de pó!¨...

...¨És bueno nadie acompanharme¨...

...¨Por quê? Conheço Barreira Roxa desde menino¨...

...¨És que esta mata és asombrada¨, disse e sorriu...

...Parecia que Samuel não tinha cama onde dormir, foi o que deduziu o ver a chaqueta com o chapelão de Sandino bordado às costas, dobrada sobre um pedaço de esteira, no chão...

...No único aposento iluminado da cabana, a cozinha, um xaréu de pouco mais de um quilo, enfiado num espeto de pau e embrulhado em folha de bananeira, assava num fogareiro aceso no chão, para servir de tira-gosto à cachaça que Samuel oferecia, numa caneca...

...A mata rasteira e densa não impedia que se enxergasse à distância os reflexos vagos e esmaecidos da luz do farol, abaixo da paisagem e perdendo-se na escuridão...

...A visão fantástica das impressionantes formas de solidão e tristeza estendia-se na quietude da vegetação, sobre uma belíssima vista que começava por cima da copa das árvores e, à sombra escura do arvoredo, em forte declive, seguia em linha descendente até as ondas quietas da beira do mar, a mais de um quilômetro de distância, à direita da sossegada enseada que se iniciava na deserta Barreira Roxa, espairecia-se entre morros cobertos de mato, descia levemente um vale profundo, em suave e lenta curva, para terminar no Morro do careca, na longínqua Ponta Negra...

...Tudo parara...

...Na escuridão, o silêncio parecia mais medonho. Com auxílio da memória e da imaginação podia-se divisar, no azul da meia-noite as sombras escuras da Barreira do Inferno, base brasileira de lançamento de foguetes meteorológicos...

...Depois de limpar uma parte do chão, Samuel afastou com o pé uma touceira, cavou parcialmente a areia, retirou um pacote pequeno, agitou-o no ar e exibindo-o, satisfeito, gritou: ¨É fumo, mais fumo!¨...



CAPÍTULO CLXXIX

Há muitos meses Samuel vivia de favores. Sem ninguém a quem recorrer, sobrevivera até ali devido à solidariedade latina e às fraternas amizades populares feitas ao longo de três anos em Natal. Preocupado com a subsistência do amigo e em livrá-lo um pouco de sua carga, indagou: ¨Como estás de dinheiro? Precisas de mantimentos? Não falta nada?¨...

...¨No me hace falta nada. Aquí és bueno como esconderijo. És seguro. Só no fue buena la primera noche de lluvia. Carajo! Um dilúvio. Después, me acostumbré. Aqui tem umas árvores frutíferas nativas, ótimas. O caju é meio azedo, mas a maçaranduba e o camboím são ótimos! Brincadeira...

...Não falta nada...

...Ao ser indagado, mesmo diante das evidências, o nica negou que fora ele quem pregara o papelinho sobre los niños no muro e, sorrindo, meio sem jeito, disse nada saber nem do que se tratava...

...Nunca ouvira falar no tal papel...

...¨Yo non redatei nada!¨, disse enquanto apertava outro purito e mudava de assunto...

...¨Yo e Assis cultivamos por aí um pé de marijuana, na mata... ou, perguntou, de adonde Usted acha que eu ia tirar dinheiro para comprar o purito?...¨

...Lá fora, Pepe amontoara galhos e gravetos, acendera uma fogueira para afastar os insetos que começavam a importunar e, atento ao perigo, fazia guarda, muito quieto, com as mãos ao redor do joelho, parecia um índio. Espreitava a escuridão, imóvel e calado, espiando tudo o que se movia lá fora: ¨Tuvimos um buen sinal¨, disse ele quando Samuel apareceu: ¨La coruja voou na hora em que la rádio se paró¨...

...¨Eu vi, sim¨. e Samuel sorria, seguro de que o amigo brasileiro não entendera lufas. Inesperadamente, Pepe abraçou Samuel e fez-lhe um pedido: ¨Quiero ir con vos, Samuel!¨...

...¨No digas tonterias, Pepito!¨, respondeu o nica, pondo um ponto final no assunto...

...Sem o visto de permanência, tornara-se menos gente ainda enxergava los federales em todos os lugares e imaginava-se preso ou expulso do país, o que seria catastrófico, porque o irmão caçula, guerrilheiro sandinista, lutava na frente de Matagalpa. Se fosse recambiado e ligassem o sobrenome, o parentesco o levaria ao pelotão de fuzilamento...

...Numa demonstração clara de a que a preocupação básica era com a segurança, Pepe comentou: ¨Hay un amplio espacio para fuga, verdad?¨...

...¨Se cuida, tá legal?¨...

...O nicaragüense fixou o olhar escuro e distante no amigo, como se soubesse que o via pela última vez: ¨Oye! És bueno que lo sepas: tenemos muy poco tiempo y por eso alguien vendrá para ajudar. No lo sé quién, pero vendrá. Quédate tranquilo. No me va pasar nada!¨, e depois, disse... ¨Que el señor de la paz conceda la paz a usted, siempre y de todos los modos!¨...

...¨Quedate tranquilo, Hermano¨, disse-lhe Pepe, ao despedir-se, ¨se quieres irte, tu te vás a ir¨...

...¨Si me voy! Pero todavía no lo cuentes todo, Pepe¨...

...¨Não me contar o quê, Samuel?¨...

...¨Nada, nada. Cosas mías, personales. És mejor que nolo sepas. Tienes que fiate¨...

...Enquanto desejava-lhe boa sorte, anunciando o dia e a hora de voltar à realidade, um galo cantou e eles se prepararam para descer o morro. Desceriam por outro caminho e não seria bom se alguém os visse sair, à luz do dia, nos fundos da Escola Doméstica. Aquele caminho ele conhecia e foi na frente, despencou morro abaixo ao lado de um Pepe bem diferente, visivelmente confiante no futuro do amigo nica, sobretudo com o que lhe interessava de imediato, a segurança...

...¨Samuel está bien de ánimo,¨ comentou Pepe, ¨y nadie puede encontrarlo acá!¨, e seguida perguntou: ¨Que tal, que vás a hacer por Samuel?¨...

...¨Acho que sei como posso ajudar¨, mentiu, falando por falar, pois não tinha a mínima idéia do que fazer, ¨esse é o menor dos meus problemas¨...

...Encerrando o assunto, Pepe ultrapassou-o e correu morro abaixo.



CAPÍTULO CLXXX

Tudo aquilo representava uma aventura nova e se já estava confuso, ainda mais ficaria ao saber que a mãe recebera um envelope pardo, lacrado. Não soube dizer quem deixou a documentação com a denúncia de tráfico de órgãos e a sugestão de que o governo brasileiro mandasse constatar a veracidade, os números e as análises...

...Mais do que nunca era importante tirar Samuel do Brasil, se bem que o certo seria apelar ao reitor poeta, e o caminho ficaria mais fácil porque ele entenderia a história. Entretanto, sem explicar por quê, Samuel rejeitou esta saída, não queria mais estudar, só voltar à Nicarágua...

... Salientando a angústia em que se encontrava o nicaraguense, ainda soava em seus ouvidos a aspereza da sua voz: ¨Escuchá-me! Oiga-me! Volveré para inspirar e estimular los mais jovenes: Volveré!¨...

...Seu grito ecoava na mata escura...

...¨Adiós, amigo! Que D(yo)s vaya contigo!...¨

...Ninguém seguraria Samuel no Brasil.

...Tinha que ajudá-lo, cabia-lhe prestar todo o auxílio possível, traçar a ponte que levaria Samuel à América Central...

...Escolheu um caminho quase ´profano´, a ajuda de um maçom de potência elevada, esotericamente um tio, irmão do falecido pai, com o qual tantas vezes tivera o encargo de guardar e transportar o estandarte, e que repousava no oriente eterno. Sob compromisso de sigilo absoluto, apelou ao dever sagrado da irmandade, e pediu a um venerável ´tio´ livre-maçon, um burocrata graduado da universidade, cópias de todos os documentos...

...Na mesma noite, invisíveis tentáculos retiraram do arquivo a pasta do aluno Samuel Mariano, que foi entregue na madrugada a Assis, com a exigência de devolução imediata...

...Na tarde seguinte, sozinho, subiu o morro de Mãe Luíza e de bar em bar tentou identificar o lugar que levava direto à mata onde fora com Pepe, parecia tudo igual, e perto de desistir, viu Assis no balcão de um boteco, sentou-se ao lado, insistiu na questão da devolução dos originais que lhe confiara o tio em sigilo justo e perfeito, pela herança paterna até então intocável, valioso voto de confiança que não poderia quebrar...

...¨Samuel diz que fica com tudo¨, avisou o pintor, ¨não devolverá nada, ele disse que não vai estudar mais mesmo e não quer deixar rastro na universidade¨...

...¨Cassete! E agora, o é que eu faço?¨...

...Assis olhou-o pelo canto dos olhos, desconfiado, ¨ele disse que o responsável pela operação de tirá-lo do país tem que ser você. E disse para ouvir o vento¨...

...Para prever acontecimentos, às vezes alguns latinos costumavam recorrer a adivinhações e se comunicavam através de linguagem simbólica, mística. Nunca imaginara o nicaragüense místico...

...¨Samuel falou que o vento é o ar que a gente respira e que o ar que a gente respira é de todos, é nossa consciência¨, continuou Assis, ¨mas eu acho que ele disse para você ouvir mais do que a consciência. Ele disse que na nossa vida avisos aparecem para nos ajudar, guiar, mas que a maioria não percebe o vento. Ah! Ele também disse que alguém virá para ajudar, que você saberá, quando isso acontecer. Certo? Entendeu?¨...

...Assis contou que em duas semanas o nicaragüense teria visto, passaporte, carteira de identidade, tudo novo...

...¨Como?¨...

...¨Ele não disse, não me explicou como. Pepe ficou de descolar a grana que precisar. O nica tá na maior aflição, insiste que você arranje pessoalmente um jeito dele sair do país. Disse para você aguardar, que logo saberá o que fazer¨.



CAPÍTULO CLXXXI

Ocorrera uma idéia ao grupo latino-americano e ele compareceu à casa de El Ruço para uma reunião com Germán, Pepe e uma jovem desconhecida, bonita, uma morena de cabelos encaracolados chamada Blanca Estela Roura, vinda diretamente del corazón del pueblo Maya, conforme ela mesma disse ao ser apresentada...

...Por seus gestos reduzidos, aparência tranqüila e traços que em tudo lembravam o jeito cigano de Samuel, Logo de saída, de alguma estranha forma, ela causou impressão desfavorável, obrigou-o a agir cautelosamente, sobretudo porque não sabia com quem falava, e para quebrar o gelo, perguntou-lhes o que tinham em mente...

...¨A solução do problema de Samuel¨, disse El Ruço e todos se entreolharam, fizeram silêncio como se esperassem dele uma reação negativa...

...¨E qual é esta solução? Levá-lo à fronteira?¨, perguntou e demorou a entender o silêncio que se seguiu, até que, com voz doce e jovial, a jovem falou algo surpreendente, realmente extraordinário...

...¨Hay una manera de quitar Samuel de acá¨...

...Olhando-o bem nos olhos, Blanca o surpreendeu com uma desconcertante, porém, lúcida e realista proposta, e disse, impositiva: ¨Yo voy simplemente dar mi opinión. Por que no hablas con vuestros amigos, los militares. Es posible ponerte en contato con ellos? Tu deberías de saberlo mejor que nadie. Eu expus uma situação, mas é você quem devide. Te lo pido: averigües, ellos pueden ajudar¨...

...¨Ora, vamos! Por que eu faria isso? Está fora de questão! Isso não vai resolver nada!”...

...Podia ter respondido: meta-se com a sua vida!¨...

...Levantou-se quase aos berros e completou: ¨Jamais! Em tempo algum! Jamais! Em tempo algum! Isso pode ajudar talvez um pouco, mas, gente! Que sugestão mais descabida!¨...

...¨Es una broma?¨, indagou Germán, meio bêbado, com a voz engrolada...

...¨Uma quê?¨...

...¨Uma brincadeira¨, ele perguntou, e meio bêbado, El Ruço esclareceu, acrescentando, ¨yo creo no que es una buena idéia, te puede salir caro, verdad?¨...

...¨O que pode me sair caro, hombre?...

...¨Este negocio de hablar con los milicos!¨...

...A sugestão de Blanca parecera a El Ruço, como para ele próprio, antes que uma solução, uma afronta. Porque pôr em risco um relacionamento altamente honroso, que, aliás, jamais fora usado e permanecia ¨virgem?¨ Além do mais, a maneira como a moça falou sugeria muito mistério e o que parecia ser apenas uma conversação banal tornou-se sério. Por pouco não ficou fora de si. Dominado pela incredulidade e o espanto, não pôde acreditar no que ouvira. Evidentemente por fora do assunto, boracho, com a voz engrolada El Ruço comentou: ¨As veces uno hace cosas que no le gustan¨...

...Incomodava o fato de a menina Blanca parecer independente demais, convencida do que dizia...

...Era preciso analisar, antes de acatar a sugestão, e pesquisar mais para não se envolver gratuitamente numa aventura com os militares que, desde outubro 1975, nunca procurara. Tentando demonstrar uma calma que não sentia, com a voz quase sumida, no fundo da garganta, falou: ¨Vocês enlouqueceram? Estão malucos? O que é que você sabe disso, garota? Pormenorize, por favor. O que é que você sabe de mim e dos militares?¨...

...Num segundo lembrou que, na descida do esconderijo de Samuel, ao menos por um segundo chegou a pensar nesta possibilidade, de consultar os militares, mas achara loucura. Como Blanca não respondeu, questionou se alguém ali tinha idéia do que ela acabara de dizer e a resposta foi uma surpreendente revelação...

...¨Si, como no!¨... Simpática e cordialmente, ela mesma retrucou: ¨Chegamos no Brasil há poucos dias, vindos da Costa Rica, e temos informações de que o governo brasileiro já mandou voltar os adidos e todos os observadores militares das suas embaixadas na América Central. Demás, estuvo com el embaixador brasileño em El Salvador, señor Galvão, que és por casualidad de acá, del Rio Grande del Norte. Como pinzaba usted que llegamos acá?¨...

...Era realmente difícil acreditar no que acabara de ouvir. Tomado por ligeiro mal-estar, estranhou aquelas palavras, pronunciadas de modo pouco convincente.



CAPÍTULO CLXXXII

Suava frio, não só pelo impacto da revelação mas porque começava a gostar do jeito moreno da encaracolada Blanca, excitado por ouvir num primeiro encontro de uma desconhecida afirmações tão contundentes, sobretudo a forma como ela dissera ¨temos informações¨. De quem? Em princípio, se era a única opção pensada, não podia fazer nada: ¨Llevar Samuel hasta la frontera le sale muy caro, é perigoso, implica em riscos desnecessários¨...

...Blanca encarou-o nos olhos: ¨Vou lhe contar algo que você não sabe, periodista: viemos de carona num avião da Força Aérea Brasileira. Entiendes?, perguntou e fez questão de repetir, pausadamente: Fue-rza Aé-rea Bra-si-le-ña. E não me trataram como inimiga. Foram muito gentis, acolheram-me como hermana¨...

...¨Não estou nada impressionado, minha amiga¨...

...¨Oye, periodista¨, interveio Germán, querendo ajudar, ¨tiene que haber otra solución, como no?!?¨...

...¨De algun modo tenemos que sacar una salida para Samuel¨ ,disse El Ruço, interrompido por um ruído de passos...

...Havia mais alguém na casa e, de repente, algo estranho aconteceu. Um rapaz de não mais que vinte anos, com frescor de banho, perfumado, após cumprimentar o grupo com um aceno, dirigiu-se à Blanca e falou: ¨Nos és una mala idea: es una possibilidad y no hay tiempo que perder, el momento requiere firmeza. Buenas noches, periodista¨...

...Parou e disse: Pajaista!.

Antes de sair da sala, após o silêncio que se fêz, indagou: ¨Amorcito, tienes plata? Dá-me alguna y te esperaré en el bar, para una pivo, allá, en la pereúlok...

...Sem dissimular o assombro, constatou: toda aquela história estava muito mal contada. Conteve o impulso de se levantar e apenas disse: ¨Ia govariú poruski, tovarich¨...

..O casal se entreolhou, surpreso, meio sem graça e como se despertasse de imenso torpor, arrancado rapidamente do devaneio, deixando cair no chão a toalha, perplexo, o rapaz custou a entender o que se passava...

...El Ruço se irritou: ¨Que fue lo que dijo el tipo?¨...

...Confuso, exclamou: ¨Y, mierda! Que se pasa acá?¨...

...¨Por ahora no importa más¨, disse Blanca, querendo adiantar-se...

...¨Quieto, El Ruço. Tem mais gente na jogada¨, disse, indo diretamente ao ponto: ¨Você não tem nada para me dizer, menina? Também sei falar russo¨...

...¨E quem falou russo aqui?¨...

...Sem mover a cabeça, apontou o rapaz com o queixo e a partir desse momento não se tratava mais apenas de uma reunião com os latino-americanos, a sensação de engabelamento ficou clara no pensamento...

...Blanca ficara visivelmente nervosa, a história que contara parecia suspeita, tão absurda e tão incrível, que era difícil de acreditar: ¨Quem é você, afinal, garota? Quem são vocês? Digam!¨...

...Os olhos de Blanca se abriram e ela respondeu: ¨Já te disse, soy de Guatemala. Apresento-te Fernando, mi novio, que también és de allá¨...

...¨Não engulo essa história de carona no avião da Força Aérea! Diga-me: onde você aprendeu russo?¨...

...¨Fomos selecionados para la Universidad Patrice Lumumba e estamos a caminho de Moscú. Seguiremos para São Paulo, de onde embarcaremos, até Paris. Calma! Não somos KGB, se o preocupa¨...



CAPÍTULO CLXXXIII

Sem aceitar a explicação, pouco convincente, esperou que ela dissesse algo mais coerente, porém, sorrindo inocentemente, Blanca continuou no ataque, ao perguntar onde ele aprendeu russo...

...¨Estudei um pouco de russo em São Paulo, com um húngaro, Laszlo Rádokczy. Na época eu deveria ter ido para a União Soviética, trabalhar e estudar lá. Já tinha sido preso três vezes e o Partido achou que não valia a pena correr o risco de me ver cair outra vez, de ser preso ou morto. Depois, eu soube que iria mesmo era para Budapeste, para trabalhar na redação da edição em espanhol da revista PPS, Paz, Progresso e Socialismo, aí, desisti porque teria que aprender húngaro. Meu russo é elementar. Pómach”, já esqueci tudo!¨...

...¨Antes que alguma suspeita nova e injusta se lhe esboçasse ao espírito, com um comentário El Ruço tentou desviá-lo dessa idéia...

...¨Fica tranqüilo, hombre. Todo que si quiere és que ajudes a Samuelito. Quem mandou Blanca sabe o que faz. É gente nossa e Usted sabe que nosotros não iríamos lhe prejudicar¨...

...Apesar de sensata, a afirmação não dirimiu a cisma, não convenceu. Desconfiado, falou que iria pensar...

...¨Tenham cuidado, evitem falar russo. É arriscado. Deixem-me pensar¨, e dirigiu-se aos bolivianos, ¨não me apressem, não sei mais agir sobre pressão, desaprendi¨...

...Blanca aproximou-se, apertou-lhe a mão, sorriu, olhou-o nos olhos e perguntou, compreensivamente: ¨Que haremos? O mejor, que pretendes hacer?¨...

...¨Já disse que vou pensar, mas em princípio, pela experiência que tenho com esse tipo de coisa, quanto menos gente metermos nisso, melhor. Os contatos são muito delicados¨...

...¨Sacar Samuel del peligro és el único que importa, pero que sea rápido, por favor. La única salida és mismo hablares con los militares. Parece que no tenemos salida, tu deberías de saberlo mejor que nadie¨...

...Passando-lhe um cartaz com a foto do empresário e jornalista liberal Pero Joaquim Chamorro, assassinado em 1978 em Manágua, cujo texto dizia que “el personal de creatividad, publicidad y los periodistas de Nicarágua pidem solidariedad y justicia”, procurando tranqüilizar-lhe, ela disse: ¨Nada temas, compañero. Somos la Juventud Socialista Internacional. Spacibo! Do svidania! Adios, Hermano! Dobri vécher¨...

...O rapaz, que perdera o aspecto jovial de pós-banho, ao se despedir, tremia, assustado, e Blanca falou...

...¨Si fueras prudente seguirias mí consejo¨, disse, ¨usted no sabe lo que es la muerte. Están matando mucha gente en mí país, Guatemala, con armas y plata yankee¨...

...Pegando-o pelo braço, jogou a jaqueta sobre os ombros, cantarolou a primeira estrofe da Internacional Comunista e sumiu, como num passe de mágica, ao lado do assustado companheiro...

...Mesmo considerando demasiado inconsistentes as explicações da guatemalteca, sabia com a mais absoluta convicção que, sem uma grande ajuda não tiraria Samuel do país. Pensando consigo mesmo, talvez Blanca tivesse razão, e embora houvesse desencadeado em seu espírito mais espanto do que esperança, a proposta exigia considerações bem cuidadas. Será que não haveria uma alternativa, além do impulso criador daquela frágil e internacionalista célula revolucionária? A saída, claro, poderia estar nos militares, que poderiam dizer não, mas isso não seria o pior: o pior seria abandonar e não acudir o amigo. Se decidisse, pois, procurar um quartel, para evitar levantar suspeitas nem quanto aos amigos latinos e si mesmo, precisaria agir com a máxima naturalidade.



CAPÍTULO CLXXXIV

Depois de uma manhã com El Ruço no Caravelas, concluiu que seria melhor deixar as coisas correrem normalmente e, de repente, a idéia de ir aos militares não parecia ser um problema...

...¨Eu acho isso maluco, mas vou fazer o que a menina disse. Que achas, El Ruço?¨...

...Com auxílio da melhor dupla etílica praieira, cachaça com caju de tira gosto, enfim compreendera a simplicidade lógica e o significado do que dissera Blanca...

...Ao ler, então, na tarde do mesmo dia, a nota do Itamarati publicada num jornal da cidade, em repúdio ao massacre de Estelí, patrocinado pelas tropas somozistas, e a notícia de que o alemão mandara fechar a embaixada brasileira em Manágua, interpretou-a como uma sinalização e a dúvida criada por Blanca sumiu, apesar de continuar achando muito arriscado entrar num quartel para pedir aos militares que acudissem um revolucionário sandinista, porque, naquela altura dos acontecimentos, Samuel o era... e ele, também...

...Envolvida até a medula com as finais do campeonato brasileiro de futebol, totalmente esquecida da tragédia nicaragüense, a mídia não chegara a analisar dessa forma, mas ele sim, e a rápida e discreta nota diplomática, como um sinal de mudança dos ventos, pois estava na cara que o governo brasileiro negociava diretamente com os sandinistas, o que diminuía os riscos, se optasse mesmo pela sugestão de Blanca, de obter para Samuel, o discreto auxílio militar brasileiro...

...Durante alguns dias hesitou se deveria ou não fazer o contato...

...Deveria ter uns dez anos de idade quando a seca obrigou um tio a deixar o sertão e tentar a vida em Natal, para sobreviver com o leite de quinze reses que trouxera para pastar na área do 8° Regimento de Obuzes, em troca de alguns litros diários para o rancho. Nas férias, saía de casa de manhãzinha, atravessava a cidade e chegava no curral ainda a tempo de tomar um copo de leite quente fresquinho, depois apascentava as vacas nos verdes pastos tranqüilos do quartel, sob a vigilância de sentinelas. Nos dias quentes tirava uma soneca embaixo do lustroso e engraxado canhão de 55 milímetros, na 2ª Bateria...

...Como todo quartel de artilharia, aquele também vivia uma rotina de paz, sem alteração, as praças venciam o tempo na manutenção das peças e quase não se ouvia ruídos, além do canto dos pássaro na alameda arborizada e na vegetação que cobria como um tapete verde as dunas baixas, uma paisagem que levava qualquer um a não se sentir num quartel. Há poucas unidades militares no Brasil tão harmoniosamente compostas com a natureza tropical quanto o antigo 8° RO...

...O quartel era o mesmo da lembrança, com a diferença de que passara a chamar-se 17° Grupamento de Artilharia de Campanha. Conhecia-lhe todas as dependências. Aposentados como peças decorativas, lá estavam, na primeira e na segunda baterias, os canhões de 40, 55 e o antiaéreo de 88 milímetros. O Exército se modernizava. Em lugar dos velhos canhões da 2ª Guerra Mundial, usava unidades eletrônicas computadorizadas, os ´dois tubos´, canhões capazes de localizar e disparar em segundos, na direção de qualquer alvo móvel que invadisse o espaço aéreo de Natal. Telefonara e o coronel concordou em recebê-lo, com a restrição de que viesse incógnito...

...Ao identificar-se na casa da guarda descobriu que sua reputação tinha-o precedido e o oficial de dia, um capitão que o conhecera na praia, designou um soldado para escoltá-lo ao comando...

...¨Já faz tempo desde a última vez que nos vimos. É bom te ver de novo¨...

...O tenente-coronel do Recife recebera as divisas de coronel e como honra especial, o Exército Brasileiro concedera-lhe o comando do 17°, a primeira unidade onde serviu quando deixou a Academia Militar de Agulhas Negras...

...Recebeu-o com solicitude, respeito, reconheceram-se como dois bons amigos e num ambiente cordial conversaram e entenderam-se, viram que eram de igual opinião sobre a maioria dos assuntos...

...¨Posso ajudar em alguma coisa? O que posso fazer por você?¨...

...¨Não devia incomodá-lo no trabalho, mas sei que vai me entender¨, disse-o e foi direto ao ponto que interessava, resumiu em rápidas pinceladas a história do nica...

...Comedido e silencioso, sem a menor expressão de surpresa e sem nada comentar, o coronel até sorriu, paternalmente, prometeu examinar o assunto e disse que auxiliaria...

...Confiava no experimentado tirocínio do coronel, sabia que na própria esfera da sua gestão administrativa, não por mera cortesia, mas porque parecia de fato interessado em ajudar, poderia prestar grande ajuda...

...¨Conto com o senhor¨...

...¨Foi bom falar com você. Vamos apoiá-lo, mas é muito importante manter segredo¨...

...De pé, acompanhou até a porta...

...¨Agora, quero que meu pessoal conheça você¨...

...Foi recebido com incomum simpatia no cassino, onde comeu feijão preto com arroz, picadinho, bebeu suco de caju e falou de política. Apresentado a um por um dos oficiais da unidade presentes naquele momento, tornara-se o centro das atenções...

...¨Obrigado por me prestar este favor, coronel¨...

...¨Eu vou lhe conceder uma ajuda¨...

...Pela cabeça de qual esquerda passaria a idéia de um nicaragüense ajudado por militares? Brasileiro nenhum, em juízo perfeito, em pleno vigor da guerra ideológica, não imaginaria buscar ajuda para um clandestino, num quartel. Sabia muito bem os riscos que correra, mas estava feliz só por participar, embora modestamente...

...Saiu do 17° GAC tomado por um entusiasmo típico de Santos Reis, onde tudo começou, na calçada de seu Raimundo...

...Com uma sensação de alívio, tranqüilo, seguro da honestidade do militar, convicto do apoio e com a certeza de que o nicaragüense seria atendido.



AMANHÃ: CAPÍTULOS CLXXXV, CLXXXVI, CLXXXVII, CLXXXVIII, CLXXXIX E CXC


  

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26/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
25/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
24/10/2005 - O dia do golpe (31 de Março, 1964)
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Editor: Marcos Antonio Moreira
Diretora Executiva: Kelen Marques