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comTEXTO : Acerto de Contas
Representação fictícia de fatos reais
14/08/2005- Talvani Guedes da Fonseca
CAPÍTILO CXCI
Numa das reuniões semanais de sábado, comentava-se o insucesso de Jimmy Carter na operação de resgate dos reféns americanos em Teerã, abortada de forma humilhante por Alá, segundo os aiatolás, a gota d’água que faltava para a tempestade do deserto enterrar definitivamente a carreira política do plantador de amendoim de Atlanta, porém, o assunto mais delirantemente debatido era a derrota iminente de Somoza. Sem a meiguice, que já não se impunha tanto, Roxie surgiu num vestido decotado em tonalidades variadas entre azuis e verdes, infinitamente marítima, suave e bela, adornando a manhã de sol mas sem brilhar faiscante como antes, a lua que el era antes, e nem o fundo azul do olhar inocente nem os gestos e modo de agir eram os mesmos... e o vento foi o único a saudar a bailarina do gelo...
...Pretendia limitar-se a lhe apertar a mão, no entanto, perante a encantadora norte-americana, o senso crítico de avaliação sumiu...
...Estavam à vista de todos, na cabeceira da mesa, de frente um para o outro, quando o cardiologista perguntou: ¨Vocês já se conhecem?¨...
...¨Belo dia, não?¨, adiantou-se Roxie, exibindo belos ombros nus...
...Ao apertar-lhe a mão, ele confirmou o que supunha desde o início, a estranha sensação de que alguém a usava...
...Já não via com tanto gosto os olhos que espalhavam luz e que noutras vezes tanto o alegraram, e ela ainda tentou descontração, referindo-se à paisagem, à beleza de Genipabu, ao horizonte longínquo de céu, mar e dunas de belíssimos paraísos fora do alcance da vista, de nomes Tupi, que a encantavam, mas ela, com sotaque carregado, enrolava a língua ao pronunciá-los...
...¨ Maxaraguape, Pitangui, Pititinga, Muriú, Jacumã, Maracajaú¨...
...Duas horas depois a maioria dos participantes da mesa tinha ido embora e só ficaram os dois...
...Mostrando-se subitamente agitada, encarou-o irreverentemente e na mais absoluta falta de tato, tão casualmente como se comentasse as condições do tempo, indagou, após silenciosa pausa: ¨You aren’t a Cop, um polícia federal?¨...
...Simplesmente inacreditável, a pergunta foi como se levasse um soco no estômago...
...Não a esperava...
...Ainda assim, mesmo com tanta ingenuidade, Roxie não o desarmou, mas forçou-o a pensar rápido, levando-o à dedução de que alguém a mandara perguntar...
...Escolheu, então, o silêncio como a resposta mais apropriada e sem fazer um gesto, endureceu o rosto e não abriu mais a boca, porém, logo depois, achou que deveria atormentá-la um pouco, ficando num mutismo de terror, de forma enervante, por quase cinco minutos... Roxie queria saber se era cana?...
...Pois bem, que sofresse um pouco com seu próprio veneno...
...Sem nenhum sentimento envolvido, porque voltara de um minuto para o outro a ser o antiamericano número um do país, resolveu torturá-la, e torturá-la-ia até onde achasse que devia...
...Encarando-a cinicamente, em silêncio, viu-a enrubescer, ela parecia confusa ou antes de tudo, surpresa, tanto que não entendeu a pergunta que ele devolveu, no mesmo tom...
...¨Pareço um Cop?¨...
...Pálida, trêmula de emoção, claramente envergonhada, sacudia a cabeça, negativamente, sem saber o que responder...
...Intimidada, lívida e trêmula, Roxie não replicou e no desespero deixou o rosto ficar triste, desviou-o e procurou pela irmã, que ansiosamente acompanhava tudo de outra mesa...
...Seus brilhantes olhos azuis turvaram-se, desapareceu-lhe das faces o colorido e ela deixou escapar um soluço, um resquício de sorriso, tapou o rosto com as mãos, tornando-se lívida, e o olhar mareou, perdeu o brilho azulado e encheu-se de lágrimas...
...Com o rosto contorcido, os lábios tremendo, baixou a cabeça e, silenciosamente, chorou...
...Depois, pediu desculpas: ¨I’m sorry, really... I don’t know!¨... e, em português, acrescentou... ...¨Não me julgue!¨...
...Assustou-se ao notar que ela chorara a sério, convidou-a delicadamente a se acalmar, mas ela, aflita, ainda soluçando muito e respirando em sobressaltos, tentava esclarecer...
...¨É que... não sei, você não é polícia? I’m Sory, fui inoportuna¨...
CAPÍTULO CXCII
Em amargo desapontamento, mas antes de tudo ofendido com a pergunta, e mais ainda com a tentativa vaga de explicação, manteve-se sério por alguns segundos, impassível...
...Por que não confirmou ser policial, só para ver a reação?...
...Estava mais do que evidente que alguém resolvera utilizá-la e ela, ingenuamente, caíra na tentação...
...Decepcionado, observando a nervosa excitação da deusa gringa, vendo o medo cobrir-lhe as faces, sentiu grande mal-estar, porém, a pergunta repercutia, queimava em seu cérebro, e a única resposta sentiu-a na fraca pressão da mão inerte e fria que Roxie estendeu por sobre a toalha branca da mesa, num gesto de paz...
...Invadida de profunda tristeza, esboçando um sorriso amargo, falou por falar: ¨This is my last month here... Vês, já não choro¨...
...Impressionado pela inocência e pureza da meiga menina ianque, na tentativa vã de transmitir-lhe a informação sincera de que não queria machucá-la, tomado de pena súbita, segurou-lhe frouxamente a mão...
...¨Eu não quis constrangê-la¨...
...Roxie apanhou um lenço na bolsa e assoou-se, calada, deslocou o olhar pelo bar, nervosamente, esperançosamente, como se procurasse alguém e, surgida do nada, a nurse boss, que ela tanto procurara com o olhar, com o cenho franzido e a face tingida de rubor, perturbada ao ver a irmã a um passo da autolamentação, veio em seu socorro...
...Fingindo uma superioridade que já deixara de existir, evidenciando antipatia, ira e temor, com o nariz torcido pela contrariedade, dirigiu-lhe duro e acusador olhar, dissecando-o com frio rancor, apesar de fazê-lo em reverência forçada...
...Incapaz de qualquer sentimento amistoso por ele, mal o cumprimentou e, com o costumeiro desdém, foi direta... ¨You there!... What’s happen?¨, e após ferina pausa, virando-lhes as costas, retirou-se da mesa tão rapidamente que não houve tempo de dizer bye-bye, apenas uma exclamação curta e seca...
...¨Come on, Roxie. Hurry up!¨...
...Como compreender aquele gesto?...
...Surpreendera algumas vezes certa simpatia no olhar de brilho frio da nurse boss, mas ela era complexa demais, muito orgulhosa!...
...¨I leave you!¨, disse e novamente exclamou em sua língua nativa...
...¨Follow me, Roxie!¨...
...Ergueu-se tão rapidamente que quase derrubou a cadeira. Ela correspondeu e o seguir a irmã, ainda se desculpou...
...¨I’m sorry, but I’m going out, too¨...
...Da esquina, acenou um breve adeus...
...Foi um resto de dia inquieto, bastante inquieto, ao som de We are the champpions, música que não parava de rodar no Djalma, colocada pelo próprio velho de cabeça branca que, à saída das gringas, desceu da sua salinha e foi tomar tudo a que tinha direito, uma dose de ¨rabo de galo¨, cachaça com vermute...
...¨Vi e ouvi tudo¨, disse, ¨que gringa mais besta, essa enfermeira! Passou por mim que nem um furacão! Que foi que você disse a ela, agora no final? Não consegui escutar...¨
...¨E deu tempo de dizer nada? Ela já chegou soltando fumaça´...
...¨É, teve alguma coisa que você disse que a deixou fula da vida. Nunca vi essa enfermeira chefe tão brava¨!...
CAPÍTULO CXCIII
À noite, pensando na curta conversa que tivera com o velho, não conseguiu conciliar o sono...
...Passou a semana dominado por uma perturbação de espírito que não conhecia, com pena de Roxie e a lamentar a ausência de Isabel...
...Dias depois, 19 de julho de 1979, o exército sandinista entrou em Manágua e enquanto rodava pelos bares da Praia dos Artistas atrás de informações na colônia latino-americana, encontrou um nicaragüense, desengonçado, rechonchudo, chamado Críspulo Víllen Capillas Cuevas de Aragón. Desorientado, pálido, andava reprimido pela areia, em estado lamentável, com uma expressão desesperada, de profundo desânimo, em um andar penoso, com os ombros caídos, pondo de vez em quando as mãos na cabeça, falando sozinho, desesperadamente agarrado sua única paixão, a guitarra, com ela marcndo a triste caminhada, cantando uma música excruciante. Aqui e ali, reclamava de quem se não se dispunha a ouvi-lo...
...¨Yo no lo tengo más como vivir en Brasil, sin la plata¨...
...Com o rosto pálido, o olhar inexpressivo, perdido na imensidão do mar, exclamava lastimosamente um enfadonho, irritante e monótono refrão que compusera, uma melodia que provocava sentimentos de compaixão...
...¨Ai, Nicarágua! Ai, Nicarágua/Adiós mi terra/Quiero emborracharme /Y olvidar Managua¨...
...Com os pés enfiados na areia macia e alva, lavada pela maré de inverno, vagava pela praia e se alguém se dava ao trabalho de ouvi-lo, revelava-se admirador do derrotado Tachito...
...Aproximou-se e indagou...
...¨Periodista, Tachito calio, mismo? És verdad?¨, e este, respondendo que sim, teve que escutá-lo balbuciar em castelhano frases nervosas sobre Miami, para onde teriam fugido os pais, influentes no regime deposto...
...¨Tachito fugiu para o Paraguai, Cuevas¨, para a única cidade do mundo onde há um busto do fundador da criminosa dinastia nicaraguense, numa rua que levava o nome de Francisco Franco, outro assassino, erguido por ordem do caudilho Alfredo Stroessner, uma coincidente combinação histórica de notórios criminosos, que acabava naquele dia...
...Cuevas ouviu-o calado e sua dor o comoveu, dava pena vê-lo desolado, em estado de imobilidade, estupor, incrédulo por completo, mas de alguma maneira consciente, porque, como todos os nicaragüenses, sabia que há muito tempo, prevendo a vitória sandinista, Somoza vinha transferindo dólares para o Paraguai. Era pública, notória, a sociedade que fizera com o genro do general Stroessner, na contravenção paraguaia. O plano de Tachito era comandar do Paraguai, ajudado pela CIA, a contra-revolução na América Central, sob as ordens de um novo patrão, Ronald Reagan, um ator medíocre e anticomunista profissional que antes de empossar-se como presidente da maior potência militar do mundo, com dólares e armas, avisara seu apoio a quem quer que se insurgisse contra o governo sandinista...
...Os jornais davam pouquíssimo espaço ao noticiário da América Central e ele procurava Samuel nos noticiários da televisão e, na esperança de que algum daqueles rapazes de lenço vermelho e fuzil na mão fosse o nica, foi até o restaurante universitário para tentar falar com os amigos, só sossegando quando Pepe apareceu para dizer-lhe do sufoco nos estudos, da melhora no tratamento da universidade com os latinos, que todos andavam muito ocupados e avisá-lo de uma festa que haveria na residência de umas meninas.
CAPÍTULO CXCIV
Na data marcada, compareceu com uma garrafa de cachaça boa, da boa, a excelente e artesanal Murim, presente de Djalma...
...¨Para você comemorar a derrota de Somoza. É da boa, primeira cabeçada!¨...
...Não notara até então que pulsava no coração do velho o sentimento latino-americano...
...Caminhava nas calçadas do Tirol, bairro da sua infância, em busca dos imensos espaços e dos quarteirões cheios de mangueiras, pomares de frutas raras, a graviola, o abiu, a carambola e o camboím, pequeno e doce fruto silvestre, de um cajueiro que havia no meio da rua, à sombra do qual, numa cadeira de balanço, um velho passava as tardes a olhar o ocaso da vida...
...O que fizeram do projeto do arquiteto italiano Giácomo Palumbo, inventor do privilegiado Tirol de tantas chácaras e sítios e da Natal do futuro? Fizeram de um paraiso cobaia para os novos engenheiros formados pela universidade, criada na década de 60. Ignorando a harmonia, se voltaram para o mar e construíram na balaustrada uma muralha de prédios, para que a emergente classe média tivesse o privilégio da mais bela vista atlântica da cidade...
...Queria saber para onde o vento levara os odores doces, suaves, de manga, caju, goiaba e a preguiça, muita preguiça, que só existiam no Tirol. Rememorava noites de lua cheia no céu limpo, as estrelas cintilantes, e, de repente, teve vontade de chorar, pois o bairro não era mais o mesmo...
...Crescera com o bairro e sofria por não o reconhecê-lo mais...
...Em menos de duas décadas destruíram casas, casarões aqui e ali levantaram prédios para abrigar os novos habitantes, engenheiros, dentistas, médicos e advogados os novos ricos da nova aristocracia da cidade, os profissionais formados na Universidade. Mal se fechava um inventário, prontos para demolir mais do que a memória, a razão de ser, a vida da cidade, chegavam os especuladores para cortar árvores, erguer edifícios, pavimentar ruas, esquentar tudo com um calor abafado que avançava em direção às dunas sem subir o morro, ali ficando e atormentando os moradores, aquecendo a terra e ao alterar o clima, a descontrolada ocupação ia transformando o belo Tirol numa ilha de calor, lugar incômodo para viver...
...Escravas do lucro e do luxo, paulatinamente as imobiliárias destruíam o Tirol, que perdera, para o concreto e o asfalto, grandes parcelas do verde essencial à vida. Arranha-céus ou abarrotamentos verticais para 20 ou mais famílias, eram erguidos em espaços onde no máximo antes viviam três, sem contudo aumentar proporcionalmente a infra-estrutura das redes de água e esgoto. Agora, em busca de novos endereços nos arredores da cidade, as cercanias, tal qual o fora o Tirol no passado, a brisa agradável das tardes passava direto por cima do bairro...
...Além da tristeza de ver o bairro quase rural transformado em parte do centro da cidade, carregava consigo a lembrança da dor de Cuevas de Aragón, o adolescente assustado e atônito que, de repente, via-se sem pátria...
...Numa estreita e mal iluminada rua transversal às avenidas Hermes da Fonseca e Afonso Pena, projetada pelos insaciáveis engenheiros e arquitetos que loteavam e retalhavam em frações mínimas as antigas chácaras, as meninas dividiam o espaço de uma casa recuada entre árvores. Chegando uma hora depois dos outros convidados, encontrou a festa bem animada, com gente no portão e no jardim de canteiros bem cuidados, discretamente floridos de margaridas e roseiras, ouvindo os acordes de um violão que vinham do interior da casa, a voz suave e bonita de um homem, macia, envolvente e rouca, a cantar uma melodia febril, de dor, em ritmo cigano, um lamento de tristeza que ecoava na noite morna, clara, enchendo de prantos o ar, fazendo a vizinhança ouvir a serenata do Tirol, o canto de um povo como o nosso, capaz de chorar, sentir e emocionar-se de nostalgia, repassada no sentimento de coisas distantes ou da saudade, palavra consagrada apenas na língua de Camões e incorporada à de Cervantes pela tristeza e solidariedade...
...¨Esta noche/Yo quesera/Que el mundo acabara/Y que al infierno/El señor me mandara/Para pagar todos/Los pecados mios¨...
...Absorvido pelo entretenimento triste da canção que escutara no passado latino-americano, de uma Natal que agora só cantava em inglês, não viu Jane aproximar-se para recepcioná-lo no jardim com todo o carinho, uma linda mostra de fraternidade e simpatia...
...¨Mi casa és su casa!¨...
CAPÍTULO CXCV
A atenção se voltava inteira para a voz que tocava o coração de todos, e ela entrou na casa, em silêncio, voltando logo a seguir, com uma bandeja de salgados e caipirinhas... ¨..esta és la noche de mi agonía/ és la noche de mia tristeza/por eso quiero morir¨...
...¨Linda canção, não?¨, comentou Jane, parada com uma bandeja na mão...
...¨Conoces Cuevas de Aragón? És el cantante. Vamos, adentro!¨...
... Para alegrá-lo, em discreta e sensual animação, ensaiou uns passos de mambo mas foi interrompida por um rapaz centro-americano com cara, cor e jeito de índio, que segurava pelo rabo um peixe frito, só espinha e cabeça, chamando-a para dançar. Desequilibrado diante da óbvia recusa, abraçou-se ao garrafão de vinho que trazia e seguiu, como se nada tivesse acontecido, para os fundos da casa, onde havia uma varanda e um quintal. Interessado na melodia cigana que ouvira desde a rua, dirigiu-se para dentro da casa, cumprimentou ao longo do corredor e da sala rapazes e moças de várias nacionalidades, alegre ao ver que entre os dez ou quinze estudantes que compareceram à festiva reunião, estavam alguns brasileiros. Quase não se distinguia quem era ou não estrangeiro na festa latino-americana, de deslumbramento, risos e canções, onde as anfitriãs de primeira, atentas aos convidados, com gentileza e amabilidade, acorriam com bebidas, salteñas, encilladas e outros salgadinhos preparados com carinho e capricho...
...As meninas se esmeravam para que se sentisse um deles...
...Juntando-se a El Ruço, soube que ninguém tivera, ainda, qualquer contato com Samuel...
...¨Fique tranqüilo, notícia ruim corre depressa¨...
...A certa altura, completamente bêbado, Cuevas de Aragón parou de cantar, cambaleou até um quarto e atirou-se numa cama, de rosto para baixo, incapaz de mexer um dedo. Chorava...
...Talvez a cama ou um lar fosse exatamente o que precisava...
...Sentindo uma mãozinha lhe tocar e pesar ligeiramente no ombro, virou-se e deparou com uma moça de rosto atraente, cabelo puxado para trás, apanhado num coque no alto da cabeça, com aparência vivaz, travessa, e ar inocente...
...Não a conhecia. Ela disse-lhe que trazia um recado...
...¨Mi nombre és Filipa. Presumo que tu seas el periodista¨, sussurrou em voz sapeca, infantil, uma púbere menina, alegre e descontraída, muito à vontade...
...A jovem inquieta, de olhar penetrante, expressava nos traços do rosto a identidade autêntica de inca. El Ruço interrompeu-a...
...¨Ih, Fila, estragou tudo. Não era para falar agora! Deverias dejálo mirar com sus próprios ojos¨, advertiu-a...
...O frenesi da insegurança cresceu, ele não soube o que dizer, temia o feitiço repentino do ambiente, a graça viva e franca de Filipa que, com muito desembaraço e discrição, ao servir-lhe batida de limão, comentara que ¨não se desatam facilmente os nós da paixão¨...
...Antes de enfurnar-se no quintal, ela olhou-o fixamente e repetiu...
...¨No se desatam, mismo!¨...
...Em seguida, voltou com uma batida de limão...
...¨Nós todas queremos tornar sua noite a mais agradável possível, lo que queira, quando queira y como queira¨...
...Ela perguntou se podia fazer alguma coisa para tal, ao que ele disse ¨pode, sim, porque você é muito bonita¨...
...¨Está se divertindo?¨...
...¨Faz tanto tempo que eu não me divirto! Nem sei mais como é¨...
...Ela estava na flor da idade, mas já com o corpo pronto, de mulher. Inteligente, sorria com malícia nos olhos. Fingindo-se envaidecida, sumiu, saltitante, pela casa e animado pela tolerância um tanto inesperada da jovem, à medida que o álcool lhe subia à cabeça, passou a confundir com desejo o olhar de meiguice, alegria de Filipa...
...Excitara-se...
...Passou-lhe a mão na coxa e ela não protestou ao contato...
...A inquietação só não foi maior porque novos e melodiosos sons envolveram o local no instante em que alguém começou a cantar a Internacional da juventude comunista, no quintal. Reconhecendo a voz de Germán, o índio negro, filho de um exilado boliviano que vivera no Chile, onde se cantava o hino da juventude, dirigiu-se para lá. Os pais de Germán foram expulsos por los momios, os reacionários da direita, de uma ´población´ miserável da periferia de Santiago.
CAPÍTULO CXCVI
Ouvidos sem entusiasmo no ambiente de distração generalizada, os primeiros trechos ninguém entendeu, porém, as vozes silenciaram e o cano de ternura e paixão cativou todos os presentes. Uma segunda voz, feminina, soprano afinadíssimo, em dueto, além de dar ao hino um poder sobrenatural, impôs silêncio...
...¨Sobre El odio y la guerra/Surge el canto de la humanidad/Vibra toda la tierra/Con esto hino de fraternidad¨...
...Muito sério e sóbrio, Germán respondia à voz lírica e ritmada da jovem...
...¨Juventudes del mundo/Este coro fecundo/Surge potente/Siegue valiente/ exigiendo libertad!¨...
...Tinha que serem vozes especiais para interpretar o hino das novas gerações, e o jovem casal cantou-o magnificamente, por completo, do início ao fim, sendo o estribilho saudado com verdadeiro estrépito. Aparentemente, além da dupla, ninguém ali conhecia a música da solene confissão socialista, mas a harmonia encheu de paz o quintal...
...De repente, Cuevas de Aragón roubou a cena. Despertou do porre ouvindo embasbacado e entendendo muito bem a letra e o melódico canto...
...Molhado de suor, visivelmente extenuado, tonto de sono, provocou grande mal-estar quando entrou no quintal gritando, praguejando, arquejante, com os olhos esbugalhados...
...¨Que carajo tu está haciendo, hombre?¨, gritou Germán...
...¨Puta que los pario! Estás muy alterado, Cuevas!¨...
...Saindo apressadamente de um dos quartos, ajeitando a braguilha, num salto El Ruço se pôs diante de Cuevas, segurou-o pelo colarinho, e ralhou...
...¨Para com eso, carajo! No hagas tonterias¨...
...¨Dame la guitarra!¨, disse Cuevas, tomando-a, cambaleando, precipitando-se pela porta, com Ximena correndo atrás dele na calçada. Desvencilhando-se ágil, Cuevas atravessou o jardim, mas ainda ouviu El Ruço gritar...
...¨Lleven esto comemierda de aquí!¨...
...Cuevas desapareceu na rua em tresloucada procura, quem sabe, de uma Nicarágua que não existia mais, condenada pelo hino da juventude socialista, uma fuga disparatada que no fundo nada mais era do que um angustiado pedido de socorro...
...Queixando-se da indelicadeza do somozista, Jane exclamou...
...¨Pentejo! Culpa tuya, Ximena! Fue uno error invitar Cuevas de Aragón¨...
...A hondurenha lamentava...
...¨Elle está mucho tomado y también, nervioso! Pobrecito. Me dijo que su papá perdió todo!¨...
...¨Bien hecho!¨, disse a boliviana, que parecia mesmo com raiva...
...Interrompida a música, voltando à cozinha, onde se encontrava a doce Filipa, sem querer ouviu no corredor a conversa de duas meninas, dentro de um dos quartos...
...¨Pobrecito de Cuevas¨, e a mesma voz que lamentava, quase em sussurros, começou a rezar...
...¨Santa Maria, Madre de D(yo)s... ora por nosotros¨...
...Mesmo sem a guitarra, um ou outro ainda arriscou-se a solfejar os sons da América Latina...
...¨Solamente una vez¨...
...Num instante em que ninguém mais quis cantar, sem querer ele começou a assobiar a Internacional...
...Germán, que entrara na cozinha, ao ouvi-lo emendou, quase aos gritos...
...¨Arriba, los pueblos del mundo/Arriba, famélicos de la tierra¨...
...Não se contendo, ele continuou, em português...
...¨A indolente razão ruge e consome/A crosta bruta que a soterra!¨, e cantou sozinho, soluçando no canto do muro seu amor internacionalista por todos os companheiros comunistas e Germán era um deles, talvez o mais querido latino-americano daquela comunidade, um amor equiparado ao que dedicava a Samuel, entretanto, para os latino-americanos as lutas travadas em El Salvador e na Nicarágua tinham importância mais do que a ideologia, os nomes de heróis nacionais como Sandino e Farabundo Marti eram as forças mobilizadoras, possuíam alma, sacrifícios, e basicamente era isso o que interessava. Como no Brasil, nos anos 70 inexistia na juventude a simpatia pelo comunismo e eram os mesmos que se difundiam no Brasil, o anticubismo e o catolicismo praticado em seus países, e, em geral, a maioria conhecia a repressão ditatorial mas tinha vaga idéia da divisão do mundo entre classes, partidos, estados, capitalismo, comunismo; a maioria só queria estudar e formar-se, nada mais, as idéias socialistas pouco significavam.
LEIA AMANHÃ OS CAPÍTULOS CXCVII, CXCVIII, CXCIX, CC, CCI E CCII
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