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comTEXTO : Acerto de Contas
Representação fictícia de fatos reais
23/08/2005- Talvani Guedes da Fonseca
CAPÍTULO CCXLV
Nessa altura, sem conter-se de raiva, explodiu...
...¨Isabel, meu amor, o ser humano é estúpido, pois sabe muito bem que o capitalismo é um crime que compromete a existência e a própria sobrevivência do ser humano! O fosso entre os que mais têm e os que nada possuem aumenta sem parar! Eu o digo, a vida da humanidade depende da atitude de cada ser e de cada país para com a natureza, considerada (pelos capitalistas) não como algo pertencente a toda a humanidade e a todos os homens do mundo, conhecida como fonte de recursos naturais, algo imprescindível no processo de acumulação contínua de capital, mas, os capitalistas consideram que todos têm o direito inalienável de usufruir dela, a natureza, porém há um porém, um detalhe, o bem particular de uma pessoa não pode prejudicar o bem comum. Eu sei que não existe a consciência do dever para com a natureza pura, que é a humana, porque o dinheiro, com um jeitinho, suborna normas, leis e costumes, é a chave para o poder. E o trabalhador, o ser humano, a máquina perfeita, simplesmente é mero acessório da máquina que ele inventou, no processo de produção; ele é a mão-de-obra máquina O capitalismo desumaniza e transforma o trabalhador, que deixa de ser gente e passa a ser uma peça, manuseada como uma ferramenta qualquer, embora tratada com menos atenção e carinho do que o que o patrão dedica aos equipamentos. Se o operário se distrai, um acidente acontece, e assim cada vez mais o ser humano se parece com uma máquina. Há toda uma infra-estrutura que o domina, na qual é uma peça. Hoje em dia, nas indústrias e escritórios há desde nutricionistas, que planejam o que se deve comer, para que o assalariado renda mais e melhor, à creches, planos de saúde, tudo para que a ferramenta humana funcione com 100% da capacidade¨...
...Atônita, Isabel só ouvia...
...¨Tudo bem, eu sei que não se pode comparar a vida de um operário de hoje com a de um de 100 anos atrás, as conquistas e as lutas foram muitas, entretanto há uma perda incomparável, irreversível, irreparável e lamentável, da individualidade do ser, que hoje é um número, um componente do lucro. Isso é terrível para um ser humano! O homem não pode ser dono de outro homem, usá-lo e substituí-lo quando quebra¨...
...Em seu devaneio ele mexera na parte mais escondida da memória, Isabel ainda tentou de mudar de assunto...
...¨Eu acho engraçado, amor, é que nós, seres humanos, precisamos dos quatro elementos para viver, mas não conheço ninguém que seja dono do ar, nem da água ou do fogo. Por que será que somente a terra, a menor parte dos elementos, tem dono? A terra foi dada a todos e não só aos ricos. De certa forma esta maneira comunista de pensar se harmoniza com a minha. Adoro a d(eu)s na natureza, e se o homem é a natureza e é trabalho, e é d(eu)s e se d(eu)s é a própria natureza, como disse Bento Espinosa, d(eu)s é justo e não precisa ser clemente porque é justo¨...
...Retomando a dissertação, ele comentou, com uma indagação...
...¨Existe algo mais indecente do que a teologia?¨... ...e prosseguiu...
...¨Na busca dos objetivos, que são o lucro, o consumo e a produção, em nome da filosofia criminosa de acumulação incessante de capital, o ser humano é dominado pelo capitalismo, a pior forma de vida que a humanidade inventou. Enquanto a riqueza aumenta à medida que alguém sobe nas costas de alguém que trabalha, o ser passa a ser posse, transforma-se no ter¨...
...¨Calmate, calmate¨, interrompeu Isabel, mais uma vez...
...¨No se entusiasme tanto. Não conheço e não sei quem são os vizinhos. As orelhas têm ouvidos e alguém pode ouvir. Como está na história terrível do Livro de Jó¨, observou, ¨os injustos vivem bem, prosperam, se alegram e morrem felizes¨...
...¨Então, sou um justo, Isabel, e não ligo para vizinhos. Além disso, não disse nada demais, e o capitalismo é tudo o que de ruim se possa dele dizer. Deixe-me falar, amor. Faz tempo que não falo dessas coisas e, no entanto, mais que nunca, precisamos falar!¨
CAPíTULO CCXLVI
A serenidade da expressão de Isabel fê-lo sentir-se seguro. Ao retomar a narrativa da história o tom de voz aumentou...
...¨Marx amou a humanidade tanto quanto dizem que Cristo a amou. Em defesa dos pobres e desprotegidos, viveu com a ajuda de Engels, mas a vida toda sofreu, para explicar cientificamente cada coisa, da religião, da família, do Estado e da propriedade privada. Quando Marx começou a escrever seus manuscritos econômicos e filosóficos ainda não tinha 26 anos. Para poder chegar à essência da existência humana, através do que parece ser apenas uma função matemática, elaborada a partir de dois fatores, a existência do explorador e do explorado, é claro que teve a ajuda de Engels. Marx passou fome, a filha de um ano morreu porque ele não tinha dinheiro para comprar remédio e nem um caixão para sepultá-la. Outros dois filhos também morreram pelo mesmo motivo, enfim, Isabel, embora o operariado só tivesse tomado conhecimento e aceito suas idéias como corretas, após sua morte, ele deu a vida pela humanidade. Mesmo na miséria, levou 25 anos, os últimos da sua vida, escrevendo Das Kapital, do qual, quando morreu, em 1883, só viu publicado o primeiro dos três volumes. Sei que é difícil de ler, mas, para conhecer as teorias marxistas sobre valor e mais valia, acumulação, exploração, expropriação, enfim, a essência do sistema que dia a dia aniquila o nosso futuro, o capitalismo, todos deviam ler Das Kapital, sobretudo os jovens, que é a quem cabe construir o futuro. Não só Das Kapital, mas todos os livros de Marx, desde Trabalho Assalariado e Capital a Salário, Preço e Lucro, sem esquecer uma linha, uma vírgula e ponto do Manifesto, que ele escreveu com Engels. Pouca gente contribuiu tanto para a compreensão da humanidade quanto Karl Marx. Tudo o que Marx escreveu merece ser estudado e discutido, porque nunca perderá a atualidade. Suas idéias influenciaram e influenciarão os movimentos sociais no mundo inteiro. Enquanto existir o capitalismo, uma classe social vai explorar a outra e é desta luta que advirá a grande mudança. Até lá, Marx viverá. E depois, muito depois, reinará para todo o sempre, até a consumação do mundo!¨...
...¨Que entusiasmo! Você é o primeiro marxista que conheço¨...
...¨Obrigado. Marx viu o ser como trabalho, associando-o à máquina como uma peça no processo de produção, um complemento vivo que, no entanto, não comanda a máquina nem pode submetê-la a seu ritmo e ao contrário, submete-se a ela. Obedece a ela e ao seu ritmo. Torna-se escravo da máquina, que pertence ao capitalista, que a explora e é quem a manipula. Tanto pode ser a máquina como uma mesa de escritório, qualquer coisa que implique em salário porque o capitalista compra trabalho e vende mercadoria ou serviço. Isso é a mais valia, entende? Da mesma forma que o capitalista compra a máquina, também compra o trabalho. Ou seja, o ser humano é uma mercadoria do próprio ser humano, é um homem que explora outro homem, mas quem produz mercadoria é outra mercadoria. Literalmente, o ser humano não vale nada. É o dinheiro que manda e quem tem dinheiro tem poder. O capital só é fiel a si mesmo e ao seu filho predileto, o juro. Quem tem dinheiro? Os bancos, e a rentabilidade dos bancos sempre sobe, independente de inflação ou qualquer outro fator. O banqueiro prefere favorecer a especulação financeira em detrimento da atividade produtiva porque não tem que dar satisfações aos demais setores da engrenagem, tudo é negócio, beber é negócio, enxergar, ter saúde, e sempre alguém ganha dinheiro na exploração da água, da luz, do telefone, do hospital, da farmácia, do transporte. O cidadão paga ao Estado, ao supermercado e a vida nada mais é do que trabalhar, pagar contas e dever, sempre dever. Sou marxista, Isabel, e sempre serei! Se quiserem julgar-me pelo que fiz, pelo que faço, ótimo! Assim, deixarão de julgar-me pelo que penso. Na minha juventude o mundo, como hoje, dividia-se em duas vias. Escolhi a perspectiva de revolução ligada à Moscou, a única existente na época, mesmo sabendo que não há nada em comum entre o Volga e o Potengi. Seria até mais fácil haver algo de comum entre meu sonho e a revolução americana, feita contra taxas incidentes sobre folhas de chá, mas cujos princípios se alicerçavam na ética. Infelizmente¨, acrescentou, meditativo, ¨os princípios da revolução americana sucumbiram ao regime capitalista, e hoje é como se nunca tivessem existido. Hoje, é como se existisse eu e você e um sonho de paz e pátria latino-americana. Aprendi com o marxismo, naturalmente, que não é certo ficar ao lado dos patrões, das elites e tenho certeza de que não mudei nem mudarei. Não tenho ilusões. Ser comunista é algo íntimo, uma atitude crítica diante do mundo, algo maior do que se ter, ou pertencer a um partido. O resto é o resto! Por quê? Não nascemos todos iguais? Quem disse que o socialismo é uma utopia, que se dane! Os índios viviam num sistema socialista e eram felizes, jovens de espírito, até a chegada desta besta oriunda do inconsciente coletivo mais negro da humanidade, a que chamam de homem branco¨...
CAPÍTULO CCXLVII
Isabel levantou-se e sorriu, animou-o, oferecendo-lhe uma taça. Abraçou-o num afeto além do amor e, no contato da pele, do calor do corpo, revelou a busca natural impalpável e imponderável do prazer e, feliz, era como se, naquele momento, falasse por ele...
...¨O comunismo está longe, amor!¨...
...¨Depende. Quando não existir mais propriedade, luta de classes, dominação e a exploração do homem pelo homem, que desafiam o tempo, também acabará e haverá igualdade. Numa sociedade sem contradições de classe o Estado não só se tornará desnecessário como impossível! E isso também foi Lenine quem disse¨...
...Seguido pelos olhos abertos de Isabel, que acompanhavam os seus inquietos movimentos de um lado para outro dentro do quarto, aos poucos se deixava levar pelo entusiasmo que lhe trazia à lembrança o que em tantas tardes de sábado pregara a estudantes, na clandestinidade paulista, e, após ligeira pausa, agora de pé, discursava...
...¨Sem o capitalismo não haverá exploradores, explorados, opressores ou oprimidos, porque sem o trabalho não existirá capitalismo. A força de trabalho humana assumiu a forma de mercadoria, Isabel; o capital, que é o fim em si, é fazer dinheiro e acumular riquezas, é dono dos meios de produção, das máquinas e matérias-primas e paga salários a quem nada tem, além da energia, a força de trabalho que o operário é obrigado a vender. Quem produz é o operário, mas o produto do trabalho pertence ao capitalista. Daí os interesses dos capitalistas e dos trabalhadores não serem os mesmos, porque o capitalismo marginaliza a população em benefício das classes dominantes. Qualquer trabalho vale mais do que o salário que se paga. É importante que os trabalhadores se organizem como classe e não percam de vista a voz das bases, porque a meta é destruir a propriedade privada, para emancipar-se. Oprimido e ignorante, o operário é o escravo moderno, explorado no aluguel, farmácia, mercado, em tudo! Uma vez terminada a exploração do operário pelo fabricante, logo que ele recebe seu salário, caem sobre ele as outras partes da burguesia, o proprietário da casa, o dono da venda, o usurário, e não sou eu quem diz isso, está no Manifesto que a luta do trabalhador contra a burguesia começa com sua própria existência. E o que ele produz? Um carro, um armário, um tecido? Não, o que ele produz só tem um nome, mercadoria, enquanto o patrão retém o produto do trabalho, acumula-o na forma de capital e passa a ser dono do que o operário produz, e ele é um detalhe a mais na produção que se vende diariamente, como uma mercadoria qualquer, um artigo de comércio, como qualquer outro, e vai por aí, os ricos são sempre considerados bons, educados, cultos e dignos de respeito e os pobres, exatamente o contrário, preguiçosos, imorais e sem valor. E daí? Ter belo aspecto ou estar bem nutrido e vestido não quer dizer que se tenha credibilidade! Assim acontece com as nações e nós, periféricos, somos os subdesenvolvidos, somos o terceiro mundo! Em outras palavras, os preguiçosos, os imorais e sem valor que os Estados Unidos e a Europa, educadíssimos, exploram! O capitalista diz que trabalho e capital não são antagônicos, que se complementam como faces da mesma moeda e que, na origem do capital está o trabalho, não o empresário capitalista, aquele que possui os recursos financeiros e vive de aplicá-los. E não me venham com essa, de que o empresário é a figura mais importante na produção econômica, que é o patrão quem assume os riscos e que, sem a sua iniciativa, não se criaria empregos para outros trabalhadores. Esta é mais uma mentira. O que importa é a origem do capital. Se você vende e compra, faz dinheiro; no entanto, alguém tem que trabalhar para produzir o que você vai vender ou comprar, alguém que se vendeu, vendeu seu suor, seu talento, sua força de trabalho. Se a origem do capitalismo é a riqueza acumulada e o lucro é um custo indevidamente acrescentado ao preço da mercadoria produzida pelo trabalho. Em sua teoria econômica Marx chama a isso de mais valia, o que deixa claro que, capital e trabalho, são e serão, sempre, duas coisas absolutamente opostas, muito diferentes. O valor de qualquer produto é fruto exclusivo do trabalho, que está associado à fadiga, mas o capital está associado ao lucro, algo que é acrescentado pelo capitalista ao preço, e o lucro nada mais é do que a expropriação do trabalho. Marx e Engels explicam isso, direitinho, no Manifesto Comunista, que o lucro faz do trabalhador uma mercadoria, que não usufrui do próprio trabalho¨.
CAPÍTULO CCXLVIII
¨Porque vende a sua força de trabalho, não atua para si mesmo, como disse Marx, no trabalho o trabalhador não está em si, mas fora de si, porque a liberdade na produção, seja de uma casa, um apartamento, uma mercadoria, enfim, é tão pequena que nem sequer pode determinar o conteúdo, o sentido e o fim do que é produzido. O trabalho assalariado não resulta em propriedade para quem trabalha, para o trabalhador; cria capital, ou seja aquela propriedade que explora o trabalho assalariado e que só pode aumentar sob a condição de produzir novo trabalho assalariado para voltar à explorá-lo. O preço médio do trabalho assalariado é o mínimo de salário, ou seja, a soma dos meios de subsistência necessários para que o operário viva como operário. O que o assalariado obtém com sua atividade apenas é suficiente para reproduzir sua pura e simples existência. É dever do comunista lutar para abolir o caráter miserável dessa apropriação pessoal dos produtos do trabalho necessários à reprodução da vida imediata, apropriação essa que não deixa nenhum lucro líquido capaz de conferir poder sobre o trabalho alheio. Na sociedade capitalista, o capital é independente e pessoal, enquanto o indivíduo ativo é dependente e impessoal. O sapateiro faz sapatos para calçar o povo, mas só usa os pares mais baratos, enquanto o operário da construção civil, que constrói casas e apartamentos, não pode morar neles. O pobre quanto mais miserável menos ganha, por isso só têm a ganhar com o socialismo. Milhares, milhões passam fome. Aonde eu for serei sempre comunista¨, comentou...
...¨E o que você quer dizer com isso?¨, indagou Isabel, que não entendera o comentário...
...¨Quero dizer que o socialismo é bom para os pobres, ora bolas! Não é?¨, perguntou, obstinado...
...¨Se não houvesse a posse, talvez o ser humano não o mundo começou a sofrer mudanças reais e mais velozes. tivessem o eu, o ego; o ser humano seria feliz. Agradeço muito a Vinícius de Moraes pelo poema Operário em Construção, de fundamental importância para a minha geração. Sabíamo-lo de cor. Vou achá-lo e lhe darei, Isabel. Eu juro. É mais ou menos assim...
...¨Era ele quem erguia casas/ onde só havia chão/como um pássaro sem asas/ele subia com as asas/ que lhe brotavam do chão/mas tudo desconhecia/ de sua grande missão/não sabia por exemplo/que a casa de um homem é um templo/um templo sem religião/como tampouco sabia/que a casa que ele fazia/sendo a sua liberdade/era a sua escravidão¨...
...”Que proveito o trabalhador tira da sua fadiga?”, indagou Isabel, e disse que citava o Eclesiastes, e nesse momento a memória dele falhou, porém, a reminiscência foi mais forte e as palavras de Vinícius, talvez, no decorrer da conversa, brotariam como as casas, do chão...
...¨Como disse Marx, o capital é um instrumento de pescar trabalho alheio, mas ninguém tem direito de explorar a força de trabalho do semelhante, mas é através da força de trabalho que o patrão tem sempre maiores lucros e, em troca de salários que não permitem matar a fome, nem vestir, nem morar, o assalariado fica sempre mais empobrecido. O patrão compra a força de trabalho que o trabalhador vende e que não é, diretamente o seu trabalho, mas sua força de trabalho, cedida temporariamente ao capitalista, que passa a ter o direito de dispor dela. Ele não é proprietário das condições de produção, nem do campo que lavra nem do instrumento com que trabalha, daí o salário ser uma forma injusta de remuneração, que avilta a própria dignidade do trabalho e não possibilita uma vida digna. O ser humano, no entanto, não pode ser apenas um instrumento da produção, usado como fonte de lucro, mais valia, porque a vida humana não pode ser transformada em mercadoria. O operário não possui nada, nem os meios de produção nem o produto final do seu trabalho. As vantagens são reservadas aos proprietários dos meios de produção, os patrões. Quando trabalha, não constrói um apartamento, apenas reproduz capital, o lucro do patrão, que sobe na medida em que o salário baixa. O trabalhador não se torna livre, porque os salários não aumentam na proporção dos preços. A riqueza e a acumulação de bens são criminosas; os bens foram feitos para serem usados e repartidos entre todos. Não adianta acumular. Vai faltar para alguém. Para forçar um tipo de vida a todos nós, a engrenagem em que vivemos possui poderes de pressão e inúmeros mecanismos de dominação, no Estado e na sociedade, como a religião e a educação, além dos meios de comunicação de massa, que não param de dizer compre, compre, compre, pague, pague e pague, e, no entanto, tudo o que uma pessoa precisa é viver, mas se não trabalhar e produzir, não come. Todos sabem que a questão não é produzir ou não produzir, é o bem comum. Mais importante do que produzir é distribuir o que se produz, mas não é assim que os poucos que ganham muito e a classe dominante agem. Utilizam a mídia para apresentar uma visão invertida da sociedade, como forma de impedir que a maioria desta mesma sociedade tenha tempo de pensar e agir. O capitalista discorda e diz que o importante é consumir o que ´ele´ produz, e que para isso paga salários, explora o trabalhador, e ordena que consuma, consuma, consuma... Seria esta a razão da vida? Assim é que a classe dominante age, utiliza a mídia no intuito de impedir que a maioria da sociedade tenha tempo de pensar e agir, para não apresentar uma visão invertida da sociedade¨.
CAPÍTULO CCXLIX
Ao notar o interesse pelo poema, caminhou em direção ao passado na memória e pôde reencontrar os sons de Vinícius, decorados para uma apresentação do Centro Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes. Desde então já lá se iam quase vinte anos...
...¨O poema é longo. Talvez depois eu me lembre mais. Vejamos... ...¨mas o que via o operário/o patrão nunca veria/o operário via casas/ e dentro das estruturas/via coisas, objetos/produtos, manufaturas/via tudo o que fazia/o lucro do seu patrão/e em cada coisa que via/misteriosamente havia/a marca de sua mão.../...e o operário disse...
...“Não!”...
...“Loucura!”, gritou o patrão...
...”Não vês o que te dou eu?”...
...”Mentira!”, disse o operário...
...”Não podes dar-me o que é meu”...
...E dentro da tarde mansa,agigantou-se a razãode um homem pobre e esquecido, razão porém que fizera, em operário construído, o operário em construção¨...
...¨Que lindo poema. És del mismo Vinícius de Moraes que dijo que el amor es eterno mientras dure y que se murió ahora, hace poco tiempo, lo mismo que hizo com Tom Jobim Eu sei que vou te amar, del viejo calção de banho e tarde em Itapoã?¨...
...¨Exatamente o mesmo Vinícius, grande poeta, diplomata e boêmio de grande coração. Antes do golpe de 64 ouvi o pessoal do Centro Popular de Cultura da UNE declamar este poema, decorei quase todo. Mas, aí, não deu. Tive que me virar. Deixa pra lá. Um dia conseguirei uma cópia para você. Então, onde eu estava? Ah, no operário em construção¨... ...e, interrompendo o exercício de memória, lembrou Máximo Gorki...
...¨Foi quem melhor compreendeu o operário. Ele descrevia as máquinas como monstros a sugar os músculos dos trabalhadores. Você já leu Mãe, de Gorki?¨...
...¨Não. Siga. Toma um pouco de vinho¨...
...Com o entusiasmo reforçado, não parou de falar...
...¨Sem nenhum apreço, nenhum respeito pelo homem, o capitalismo transformou tudo em negócio, até a arte, massificou-a nos meios de comunicação da cultura a tal ponto que hoje se confunde cultura com publicidade. Embora a política, a religião, a filosofia e a arte possam até agir sobre a própria economia, é esta, em última análise, quem determina a evolução histórica...
...”Dizia Marx?”, ironizou Isabel...
...”Sim. Sou ignorante em arte, eu sei, mas sei que a arte é comunicação e ao mesmo tempo a busca da perfeição, por uma compensação pela vida dura de todo dia, menos do que a ornamentação da realidade porque ela tanto serve para expressar cenas, pensamentos, como amores, fantasias, alegrias. No entanto, se confunde arte com moda, e se não é moda, não é arte. A publicidade não é isso? Na literatura, o best-seller; no cinema, a fatura, e assim vai, a mídia especializada determina o que é ou não é ´arte´, mas ´arte´ é beleza e a beleza, por ser a manifestação do gênio e a verdadeira forma de interpretação do mundo e do homem no mundo, por ser, enfim, a mais eficiente arma do ser humano e a única capaz de estimular o encontro do ser individual com a essência da humanidade e guiá-lo à harmonia e ao belo, afeta as pessoas. A função da arte não é registrar o real fielmente, é ir além do visível, ajudar a transformar a vida humana. Aliás, o que é a arte? Para Aristóteles, seria a tékhne, que deu origem à palavra técnica, mas eu acho que a arte vai além disso¨...
...¨Enfim, comentou Isabel, quem tem direito ou poder de dizer o que é arte e o que não é?¨...
...¨Tudo é e não é arte. Segundo Aristóteles, o homem tende por natureza ao saber e o sinal disto é o gosto pelas sensações, o proveito que podem ter, agradar por si mesmas, e a arte dá visão mais que as outras coisas. Pois, não só em nossos afazeres, mas também quando não fazemos nada, preferimos o ver, por assim dizer, a todos os demais sentidos. E isso porque pela visão as coisas nos são mais notórias e manifestam-se muitas diferenças. Eu considero arte tudo o que transcende. Na URSS, nos primeiros anos da Revolução, com apoio de Lenine, o poeta Vladmir Maiakovski, futurista nato, dizia que a arte, para atender às necessidades do povo, com inspiração, motivação, tinha que ser, abstrata, geométrica, seja lá como e o que fosse, desde que com linhas, formas e cores, além de funcional, arte de vanguarda. Ele liderou um movimento construtivista, mas, infelizmente, quando assumiu Staline, toda e qualquer forma de vanguarda foi proibida e passou a vigorar o terrível realismo socialista, a arte da ditadura do proletariado, do Estado e do PCURSS. Entre nós, ocidentais, arte é um dos meios mais tranqüilos de se multiplicar grandes contas bancárias, e o homem comum fica longe dela, porque os museus fecham na maior parte do tempo. Hoje em dia, o acesso à arte é privilégio de uma minoria, porque ela é patrocinada, e esse patrocínio depende do interesse do mercado publicitário e cada vez mais, do Estado, infelizmente. No Brasil, o Estado patrocina filmes pornográficos porque a arte, criação do gênio, é considerada subversiva. Eu tive dois filmes em Super-8 premiados em festivais, apreendidos pela censura, claro, e um deles foi incinerado. Fiz cinema porque arte e revolução andam de mãos dadas¨...
...¨Nuestra madre, que ravia!¨...
...¨Desculpe o discurso, mas a revolta é grande! Transformaram a arte em negócioi, mas, ela existe porque as pessoas precisam sentir que estão vivas, porque nela tudo se concilia, inclusive a moral. Lidar com a arte é difícil, sobretudo a poesia, a beleza em estado puro, síntese da sensibilidade, da sabedoria. O poeta sabe o quanto é difícil apresentar a vida em poucas palavras, e de maneira límpida, se escraviza ao compromisso com o belo ou com a dor, para representar sentimentos, maneiras de ver e sentir a vida, para despertar o mais nobre sentimento da alma, dar sentido novo a tudo para modificar a vida, uma doação do artista à humanidade. A arte é simples, mas sempre aparece ´novidade´, como música ´abstrata´, ´poesia concreta´, ´poema processo´. A poesia concreta, o que é? Abandonaram a tradição, o rigor formal do verso e a musicalidade, para criar um troço estéril. Aristóteles distinguiu como poíesis a fabricação, a produção... tanto faz produzir uma mesa ou um soneto, produz-se algo e neste sentido se é poeta. A disposição visual sem sentido da palavra, com efeitos de som e recursos gráficos. Aí, eu rezo, meu d(eu)s, livrai a arte dos enganadores!¨...
...¨Poema processo? Nunca ouvi falar!¨...
...¨É, existe, é um cruzamento de cobra d’água com jacaré, ou seja, um filho ilegítimo do pensamento abstrato com a poesia concreta, invenção de um natalense, rapaz muito inteligente. O importante é isso, a arte tem o poder de tornar as pessoas predispostas e mais aptas para a felicidade. O ´poema processo´ ou a ´poesia concreta´ conseguem isso? Não, porque a arte é um dom, embora exista até curso superior de educação artística, com pedagogia, psicologia para tentar explicar o que é criação artística. Seria alguma coisa automática, programável? Para quê? A comunicação de massa e o consumo rejeitam a arte que não dá dinheiro, seja filme, música, romance, escultura, quadro; enfim, arte é consumo, é utilizada para satisfação e prazer, mas o prazer não é nem deve ser considerado o objetivo principal da vida, porque a arte é patrimônio de todos e não só de uma elite, e é por isso que não precisa ser bela. Sua missão não é satisfazer o desejo estético dos poderosos ou de quem tem dinheiro, porque somente ela é capaz de permitir o triunfo das aparências sobre a realidade. Hoje, o que é a arte? Será que tem algum gênio do porte de Salvador Dali, por aí? De Stravinsky, Pablo Picasso, Jean Cocteau?¨...
...¨Solo gente importante!¨...
...¨Citei só os mais modernos, grandes e verdadeiros artistas, porque, se você sair por São Paulo e verificar quem usa pincel, quem se diz artista, vai terminar chorando. E há cada porcaria! Em nome da ´beleza´, o artista termina cedendo à exigência de utilidade e, somente algumas vezes, usa a linguagem da sensibilidade e da necessidade para glorificar o homem, acrescentar algo que possa dar sentido ao mundo¨.
CAPÍTULO CCL
¨Quem determina as mudanças de padrão da arte é o mercado, Isabel. Não se sabe mais o que é arte, ou melhor, os críticos sabem ou devem saber, pois são pagos para isso. A idéia do novo é a bandeira da arte, que não é mercadoria. São os homens que fazem a história e não a história que faz os homens, dizia Marx, e a história da humanidade começa nas paredes das cavernas, é ali que ela começa a ser contada, e desde que o homem se entende, a arte é uma linguagem particular de sentimentos representados pelo artista. Arte e vida são a mesma coisa, e desde ali, das cavernas, tudo o vem ocorrendo foi registrado pela arte, o nascimento da sociedade, o ser social, as organizações produtivas, religiosas, políticas, militares, o Estado.¨...
...¨Pelo que sei¨, disse Isabel, ¨a arte surgiu para glorificar divindades, decorar templos¨...
...”É, mas há tempos deixou de ser ornamental, monumental, está cada vez mais submissa ao poder do capital¨...
...¨O ser humano sempre se expressou através da arte¨, acrescentou Isabel¨...
...¨Sim¨, disse ele, ¨pois é a arte que faz com que as pessoas pensem em outras coisas, é ela que faz com que a gente se sinta sozinho, indivíduo, e tem o poder de fazer as pessoas mudarem; é a arte que capta as idéias do mundo subjetivo e enche a vida de beleza, prazer, felicidade, reflexões, mas hoje, infelizmente, a função da arte é uma só, seduzir, daí não imitar a vida; daí ser usada para atender as ´necessidades´ do mundo moderno, condicionando as pessoas por intermédio da televisão, da mídia em geral, cinema, pintura, literatura. A cultura de massa chega ao absurdo de identificar arte com pintura, transformando-a em consumo, a tal ponto que o consumo virou arte, como disse Andy Warhol, considerado o pai da pop-art, talvez porque, partindo dos objetos do cotidiano, transformou a arte em produto repetitivo, imitação de linha de produção e convenceu todos que qualquer pessoa pode ser artista, fazer arte, que em si é vida, porque ensina a viver e por ser, também, uma a maneira direta de unir contradições. A discussão sobre o sentido da arte é tão antiga quanto o próprio ser humano, começa nas cavernas. Antes, era fácil entender o elemento figurativo, de representação da realidade, mas esta arte deu lugar às vanguardas de diversas épocas; hoje a arte contemporânea ou moderna, hermética e desprovida de sentido, que envelhece rápido e tem que ser reinventada constantemente, depende mais da reflexão de quem a vê. Estilo, o que vem a ser? E expressionismo, impressionismo, figurativismo, ruptura estética? O que é inovação? É por isso que não é acessível ao homem comum, ao ser humano, o que seria bom se acontecesse, porque aí a arte cumpriria uma das suas finalidades básicas, que é ajudar a esquecer os problemas do dia-a-dia. A arte é para sentir, não é para consumir, embora, atualmente, a futilidade contemporânea basicamente só expresse subjetividade, individualismo, abstração. A pintura chegou num beco sem saída, está em crise. O capitalista é quem dita as regras do mercado e do circuito de arte, e o comércio da arte, que movimenta milhões de dólares para adornar ricas residências a torna inacessível ao homem comum. Somente as elites têm acesso. Está presa à dominação estética e a um esquema comercial de galerias, colecionadores, marchands e museus. Muita porcaria é consumida como obra de arte, Isabel. E nós sabemos que a arte existe para expressar a perfeição, a beleza, glorificar as emoções, expor conflitos e honrar sentimentos. A arte hoje é apenas a representação idealizada da realidade, uma reflexão que pode ser encomendada e até reproduzida em massa, em série, porque o capitalismo conseguiu fazer até isso, acabou com a arte, transformou-a em objeto de consumo. É terrível ver que a arte é um meio, mais uma maneira de ganhar dinheiro. Isto é vida? O ser humano merece mais que isso. O capitalista, o dono do capital, não tem esse problema porque o sistema é baseado na auto-satisfação impiedosa e cínica, que individualiza soluções e tudo se resume no salve-se quem puder. Por que o privilégio? O que os faz diferente?¨
AMANHÃ OS CAPÍTULOS CCLI, CCLII, CCLIII, CCLIV, CCLV E CCLVI
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