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Cuiabá MT, 24/09/2024
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De Última! Só lendo para acreditar

comTEXTO : Acerto de Contas

OUTRAS PUBLICAÇÕES
31 de Março, 1964
Acerto de Contas
Representação fictícia de fatos reais
24/08/2005- Talvani Guedes da Fonseca



CAPÍTULO CCLI

A conversa despertava o espectro do passado, um passado que parecia distante, ausente de sua vida, cheio de obstinadas recordações, espessas de saudades, guardadas há muito tempo no interior da alma, levando-o à rememorar episódios, reinventar fragmentos e personagens que com ele fizeram a história, ecos de detalhes guardados na memória. Submisso ao fluxo do pensamento condescendente e incontrolável, que fornecia lembranças e informações das coisas que tanto amou, cadenciadas, via jorrar, sair inteiro do coração o passado que, com o presente, atropelavam-no...

...Há muito deixara de lado a doutrinação da militância comunista e de repente era como se o tempo houvesse voltado atrás, sonhos da juventude desfilavam na memória e o passado, preservado intato na lembrança, levava-o ao cais do porto, nos tempos em dava assistência à uma fração de estivadores, a maioria analfabetos, no cumprimento de tarefas vespertinas de sábado que o Partido determinara, ou à primeira invasão de latifúndio que organizou na terra do Senhor do Bonfim, uma fazenda que um português doara ao santo, foreiro sagrado de um latifúndio paroquial. A Igreja, em conluio com fazendeiros, expulsara, há décadas, lavradores que lá viviam para não cumprir a Lei do Uso Capião...

...¨A História não cai de céu, é feita por gente como nós¨, dizia seu Raimundo...

...Era como se abrissem páginas de um livro cheio de resquícios da memória viva, um passado não muito distante, arriscado mas feliz, no trabalho de criação de sindicatos de trabalhadores rurais, compartilhado com uns poucos cristãos de esquerda, quando aproveitava as viagens pelas estradas poeirentas e lia, na carroceria da camionete, sem ninguém desconfiar, um livro que serviria de guia aos comunistas da sua geração, os Princípios Fundamentais de Filosofia, de Georges Politzer, a melhor síntese de marxismo, a mais lúcida adaptação de Marx, ao alcance de todos...

...¨Sabe, isabel, me tornei um simpatizante comunista depois que fotografei e acompanhei a greve dos soldados da polícia militar, o quartel era quase de frente para a casa da minha mãe, e foi aí, já na União da Juventude Comunista, que fiz o curso Politzer, com quem tive as primeiras noções dessa nova visão do mundo, que estudei o materialismo histórico, marxismo, socialismo, foi com ele que aprendi ser possível aplicar a ditadura do proletariado aqui, no Brasil. O marxismo resumiu para mim tudo o que eu sentia e termos de justiça, e, depois que aboli d(eu)s e a religião, adquiri uma fé brutal no processo histórico, não sou mais religioso; depois, logo em seguida comecei a aprender e a entender e como funcionam as deficiências da sociedade, meus livros eram a vida, mesmo, há tempos eu via a fome, o analfabetismo, e em tudo o que vivi desde pequeno fui descobrindo, pondo minhas idéias, aprendi como formar e ajudei a fundar um sindicato rural em Cerro Corá, participei da invasão do engenho do pai de um amigo meu, em Ceará-Mirim, ao ser expulso do Marista, entrei na política estudantil, mas aprendi muito pela observação, tudo o que eu quis e fiz tive que buscar; não pedi para entrar nessa luta, eu era, como sou, totalmente ignorante, não sabia nada, mas, como sempre procuro alguma coisa que possa embasar teoricamente minhas idéias, precisei entrar e com algumas leituras, mal digeridas, é verdade, e alguma idéia sobre justiça social, aprendi que não poderia viver comigo mesmo se não fizesse nada, sem fazer a minha parte. Senti necessidade de assumir uma posição política bem definida, mas nunca tive nem tenho ambição política pessoal. O Partido deu um curso em Natal e o livro Princípios Fundamentais de Filosofia foi minha base. Politzer é uma boa leitura filosófica do marxismo, jamais separou a ação do pensamento e morreu como herói. Você sabia que Georges Politzer foi fuzilado na ocupação da França, pela Gestapo?¨...

...¨Não o conheço¨...

...¨Esse seu curso de materialismo dialético, em vinte e quatro lições, com a máxima clareza e simplicidade, foi dado na Universidade Nova de Paris e publicado em livro. É a melhor maneira de conhecer o marxismo, como método de reflexão sobre a realidade e como instrumento para a sua transformação. Ele dizia que a história mostra que o tempo não passa sem deixar marca, que o mundo, a natureza, a sociedade constituem um desenvolvimento que é histórico”.



CAPÍTULO CCLII

Enquanto falava ele também lembrava de São Paulo, da cidade e da brasileira judia de origem russo-polonesa, do tempo em que saía para organizar comitês estudantis secundaristas, potentes células de poder germinativo, semeadoras de embriões em várias cidades paulistas, nas barbas da ditadura, no segundo ano do golpe militar...

...Como se pedisse aparte em assembléia estudantil, Isabel fez sinal e interrompeu...

...¨Já se disse que o homem será substituído pela máquina, que a máquina humana é obsoleta. Dizem que o trabalho humano será substituído pelo mecânico, que o avanço da ciência será ideal, em termos de domínio da natureza pelo homem...

...¨Yo creo que se enganam os que pensam assim, pués atrás disso tudo, siempre, estará el hombre, e sem o seu comando, não funcionarão! O braço do robô pode ser que substitua o do trabalhador, pero el robot no tiene cabeza nem coração¨, sentenciou, entusiasmada, dizendo-se leiga em assuntos de política...

...Aconchegando-se, ele prosseguiu...

...¨O capitalismo não respeita nada, não tem pátria nem jura lealdade à bandeira. Seu d(eu)s é um só, o lucro. Quer ver uma coisa? No início do século, aqui, no Brasil, o leite industrializado chegou a substituir a mãe como fonte de alimento para o filho, graças a um esquema promocional que envolvia médicos e propagandistas. Convenceram as mães de que o leite em pó era um superalimento, com ´qualidades científicas´ excepcionais, mais racional e higiênico do que o leite materno. Pode, uma coisa dessas? Até o Estado foi usado para promover o desmame. A idéia era estimular o consumo do leite industrializado, mesmo que para isso fosse preciso condicionar e convencer as mães de que as crianças podiam prescindir delas, sem dizer que os nutrientes do leite materno são fundamentais na prevenção de doenças, que o peito acalma, e que o bebê que mama é mais feliz. Não é um absurdo, o que o capitalismo faz com o ser humano? O cigarro não faz bem, afeta o pulmão e o sistema nervoso central, como todo mundo sabe, mas as indústrias de tabaco pagavam às atrizes de Hollywood para que fumassem, como estímulo, para aumentar o consumo¨...

...¨Ahora, lo hacen com el deporto!¨, lembrou Isabel...

...¨Do Século XVI ao XVIII, quem moveu o mundo foi o açúcar. Em compensação, fez surgir doenças até então desconhecidas, e a maioria das alergias ´modernas´ são ou foram criadas por alimentos industrializados. Você sabe que este açúcar branquindo, refinado, que consumimos é preto, na verdade? Na casa de um usineiro que conheci, em Pernambuco, e onde tomei café da manhã algumas vezes, não se consome açúcar refinado, só o mascavo, preto. Por quê? Ora diabete é uma das doenças que mais crescem nas estatísticas. Porque não se diz ao povo para não consumir açúcar refinado? Porque vivemos numa sociedade que funciona à base de estímulo e resposta, e, assim como a indústria tabaquista ignora o direito, a justiça, e faz o que faz, comprando impunidade, mesmo sabendo que esta estimula o crime, a açucareira também tem em seus quadros advogados caríssimos para defendê-las, enquanto continuam viciando e matando inocentes. Para Maria Luíza, a ´Malú Mulher´, amiga querida daqui de Natal, nutricionista das boas, irmã do poeta João, que me deu de presente o livro ´Sugar Blue´, o ditado deveria ser ´diz-me o que comes e dir-te-ei como e do que morrerás´ Quer saber por quê? ´Malú Mulher´ contou que um grande fabricante de batata frita, americano, é óbvio, adiciona ao produto, que em si é quase só sal e gordura saturada, uma droga que tem como finalidade não deixar saciar-se quem a come, para que consuma mais e mais e lhe dê lucros, mais e mais. E o que acontece em consequência das altas taxas de colesterol? Enfarte, doenças vasculares periféricas e derrame cerebral. Se não houver uma linha de alimentos racional e se não se regulamentar o ´marketing´ da indústria alimentícia, diz ´Malú Mulher´, muita gente vai morrer sem saber que foi assassinada pelo capitalismo que de tão ruim sepultou o que existia de bom na sociedade, como, por exemplo, o espírito de solidariedade, de coletividade, uma série de valores essenciais que sempre acompanharam o ser humano, para que sob o pretexto de que as oportunidades são iguais para todos, as pessoas se transformem em bicho, em animais irracionais. É por isso que no capitalismo não se deve falar em ética, porque ele é altamente antiético¨...

...Fez uma pausa, olhou para Isabel e o sorriso que ela lhe deu em resposta serviu como um sinal para prosseguir, com o comentário...

...¨Uma sociedade sem classes, que considere cada um pelo que é, todos compartilhando, sem desigualdades? Não deixa de ser uma boa idéia¨, comentou Isabel, vagando em meio aos seus pensamentos...

...¨Eu acho que cada qual deve viver do seu trabalho e não às custas dos outros. Agora, o que precisas saber é que a humanidade não se divide entre materialistas e espiritualistas. Esse negócio de comunista e anticomunista vai acabar. O materialista tem na matéria a única realidade, e se engana. Yo misma lo sé que hay más, mucho más. Nunca ouvi você falar assim¨, comentou, séria, e completou, incisiva...

...¨Não entendo por que você não está preso!¨... ...¨Nem eu! Você disse que nunca me viu falar assim. Como?¨...

...¨Tão sério! Pareces um pastor!¨...

...¨É que falo do que acredito, minha fé na história¨...

...¨Ah, diga-me¨, interrompeu, curiosa...

...¨Que aconteceu com aquele jornalista? Você nunca se defendeu?¨...

...De quê? Isso não me tira o sono. Não posso negar meu passado, o que eu fiz, fiz, mas não quero que a história da minha vida seja distorcida. Quando eu colaborava no jornal A República, por volta de 1977, arrisquei contar com detalhes o que aconteceu, a parte que eu sei, a que vivi. Interromperam-me no oitavo artigo da série, por pressão e medo da esquerda, que achava que eu ia entregar alguém, como se eu já tivesse entregado alguém, em minha vida¨.



CAPÍTULO CCLIII

¨Era como se ninguém quisesse mais tocar no assunto, compreende? ´Emissários´ da esquerda paulista foram enviados à Natal, com o pretexto de fazer matérias sobre o Rio Grande do Norte, mas na realidade viajaram para combater o Macunaíma sem nenhum caráter, como diziam, e, especificamente, dizer que eu estava louco. Depois da visita de um deles, o governador mandou suspender uma série em que eu abordava a Operação Jacarta, começava a contar tudo. Afinal, mais de um ano depois da morte do jornalista, havia passado o clima emocional e eu achei que estava na hora de contar tudo e dar mais uma cacetada na linha dura. Qual nada! O Mestre folclorista, por sinal, com uma citação de Goethe, tinha me advertido¨...

...¨O que ele disse, de Goethe?¨...

...¨Que o passado é frágil e deve ser tratado como um ferro em brasa. E Goethe estava certo, porque a esquerda, entrando em cena cada vez mais sob a proteção do alemão, é claro, para variar, se movimentava contra mim para silenciar a verdade. Não interessava. Pararam-me no sétimo ou oitavo capítulos e só d(eu)s sabe quantos seriam. Sabe o que argumentaram? Que era preciso interromper a série porque, do contrário, eu ia acabar ´entregando´ todo mundo. Filhos da puta! Os fatos falam por si, a História é minha contemporânea e, por enquanto, as pessoas têm pontos de vista diferentes; nem sempre é simples, fácil, não acontece à toa mas alguém, algum dia, vai acabar achando a verdade. Ainda não estou preparado e não é a hora de revelar nada, mesmo porque não tenho nada a esconder nem para contar. Com os meios que estiverem ao meu alcance, posso e devo continuar a lutar, sozinho; porque o futuro me aguarda sozinho e nada mais me resta, além da justiça da História, que prossegue, e ainda estou no processo, sou e dou continuidade a mim mesmo, embora, às vezes, eu pense que estou tão morto quanto o jornalista. Se sei que o passado não posso alterar, quanto ao futuro, posso ajudar a mudar. Não tenho outro compromisso a não ser esperar, porque a verdade sobre o passado sempre vem à tona. O fato, porém, é que o que foi meu objetivo no início, eu consegui fazer e estou conseguindo fazer; me orgulho disso. Não quero ser responsabilizado perante a História por nada que não fiz. Hoje, Isabel, eu me sinto mais leve, mais feliz porque sei que um dia haverá o momento de contar a minha história. Minha luta é a maneira de ele viver. Espero que a justiça seja feita, mas, se morrer antes, ela será feita depois, porque essa dívida da História um dia será paga¨...

...De pé e com o braço para o alto, imitando a estátua da liberdade, solenemente, Isabel declarou...

...¨A verdade o libertará! Esta escrito no Evangelho¨...

...¨Eu sei que não me deixarão em paz tão cedo, que hão de molestar-me sempre, porque é assim que os omissos se afirmam. Esquecem-se, porém, que o sangue do jornalista morto está nas mãos de todos, do país inteiro, menos nas minhas, o único a quem o passado insiste em permanecer presente. Não tive nada com aquilo, Isabel. Exceto a atividade revolucionária que se fez mais grave depois da morte e por causa da morte do operário metalúrgico, mais do que a morte do jornalista, porque representou o fechamento de um ciclo, e foi mais do que um parto da História, um martírio que poucos sabem como aconteceu¨...

...¨Você sabe o que aconteceu?¨...

...¨Só o Exército e quem esteve preso com o jornalista sabem o que de fato e como aconteceu. Quem o entregou sabe, e certamente foi um dentre os companheiros presos com ele na mesma leva da Jacarta. Este deve saber. A versão de assassinato político só foi aceita na primeira hora porque era a mais conveniente, mas um dia será preciso abrir a cortina do passado, para que tirem a verdade do armário e botem os fatos no lugar, em nome do Brasil, para que de novo se deixe cantar os trovadores. As pessoas costumam esquecer atos duvidosos, complexos, mas ninguém parou para pensar nem perguntou à viúva ou aos seus familiares se o jornalista, naquelas circunstâncias, suicidaria e por quê, caso se comprovasse, por quê se matou. Não era rico, um assalariado, como eu, entretanto, na ação contra o Estado, a viúva não quer indenização e a única exigência que faz, é para obter a declaração oficial, um atestado dizendo que a causa da morte do marido não foi causada por suicídio, e tem apoio total da galera porque ninguém, jamais, admitiu a hipótese de suicídio¨...

...¨Nunca ninguém disse nada?´, perguntou Isabel...

...¨Permanece o mistério e um montão de perguntas que nunca foram feitas. Por quê o Exército divulgou a foto dele sentado no chão, com o cinto em volta do pescoço, preso à grade da janela, a cabeça pendendo para um lado, se era óbvio que ninguém acreditaria que, naquela posição, seria praticamente impossível alguém se enforcar? O Exército não é burro, Isabel! Daquele jeito, dificilmente, nem o rapaz nem ninguém se enforcaria. Então, que razões teve o Exército para fazer e distribuir uma foto que o deixava numa situação ridícula, de a ter forjado? Por quê não se fez outra foto, mais confiável, convincente? Afinal, a circunstância da fotografia por si mesma era inexplicável. Ingenuidade ou estupidez? E mais, que razões teriam levado o jornalista a rasgar o papel que ele próprio pedira, e no qual escreveu um depoimento? Por quê o rasgou? O que teria escrito, a ponto de levá-lo, talvez por arrependimento, a engolir o papel pedaço por pedaço? Para não testemunhar contra os outros? Por que isso nunca levantou dúvidas?¨



CAPÍTULO CCLIV

¨Revirar todo esse passado¨, observou Isabel, que o escutava atenta, embevecida, ¨o que um dia terá que ser feito, será muito doloroso¨...

...Ele continuou, sério, num tom dramático e tenso...

...¨Não seria de estranhar-se a recusa do rabino de não exumar o corpo, um cidadão americano enviado a São Paulo logo depois que o Brasil condenou o sionismo? Por quê a recusa intransigente? Se fizessem uma segunda autópsia, já que a que o Exército apresentou foi recusada, talvez a verdade histórica prevalecesse. Nunca ninguém disse que houve assassinato ou suicídio. Desde o início, a maior dificuldade para se chegar a verdade tem sido o silêncio, mas, mesmo que nada se conte agora, a História vai acabar achando a verdade e ela um dia virá a tona, e todos saberão que a memória é muito maior do que o presente, e que sempre o supera. Há muito pouca informação confirmada sobre este caso. Os coadjuvantes do episódio sabem que pistas ainda podem ser encontradas nos arquivos, assim como sabem que deixaram muitos rastros para os historiadores e cientistas, interessados na verdade seguirem, para que as próximas gerações saibam o que houve, a verdade nua e visível, sufocada por conveniência ou omissão. Quanto mais fundo escavarem mais mistério hão de encontrar. Todo mundo sabe que se trata de um assunto complexo, passional, mas a questão, a outra dimensão da História está e estará, sempre, bastante viva¨...

...¨Lhe acusaram de algo?¨...

...¨Nunca me acusaram de nada, direta ou indiretamente, assim como nunca provaram culpa minha em nada. Ninguém das minhas relações ou quem comigo houvesse foi preso em decorrência de qualquer coisa que eu fizesse, os que caíram o foram por consequência das ´entregações´ feitas por aqueles que estiveram presos com o jornalista. Minha tragédia pessoal foi ficar em evidência, num momento difícil. Fui condenado sem que jamais ninguém apresentasse provas, não digo que irrefutáveis, uma prova qualquer. Uma só! Em memória do jornalista e do metalúrgico mortos em 1975, esta história não pode passar de uma geração para outra sem que a verdade venha à tona. Sei que algumas questões levarão anos para serem respondidas, mas sei, também, que um dia haverá uma conclusão. Se, na época, tiraram as próprias conclusões sobre o que aconteceu foi porque havia interesses em jogo. Para mim, a morte do companheiro é até hoje um mistério, mas ficou a explicação conveniente e, infelizmente, a verdade só é conhecida por poucos. Não sou um criminoso, não cometi nenhum crime. Se cavarem mais fundo, um dia verão a injustiça que me fizeram...

...Interrompendo-o, Isabel comentou que teve uma sensação estranha enquanto ele falava...

...”Parece que estive ao seu lado quando tudo isso aconteceu¨...

...¨Isso significa que você é a primeira pessoa a acreditar em mim. E é a primeira, também, com quem falo sobre isto. O fato concreto é que, de repente, esqueceram as acusações. Quais eram, mesmo? Vai ver que não sabem, como nunca souberam, e, diante do esquecimento tenebroso, do silêncio a que se impuseram sobre o episódio, só me resta a alternativa de agir. Ou melhor, de continuar agindo, sem confiar em ninguém nem me ligar à pessoa alguma, porque, se antes eu tinha, agora, mais do que nunca, tenho que agir. Sou mais ou menos como aqueles soldados republicanos, nas ruas de Salvador, descritos por Euclides da Cunha, uma vítima obscura do dever. Enquanto a maioria entrava na catedral, eu entrava onde? Num quartel. É impossível modificar o passado, mas tem certas coisas que é preciso viver para se saber como foi, e eu faria qualquer coisa, na época daria a minha vida para atingir mortalmente quem matou o companheiro, não só para provar que o que escrevi, o que fiz, tinha um sentido muito claro. E é o que faço diariamente, acredite. Se você me perguntar se valeu a pena eu direi, valeu. Às vezes, pelos meninos, quisera não ter feito. O que sei é que, depois de 1975, o imperialismo americano nunca mais foi o mesmo em meu país e isso é ótimo, porque odiar o capitalismo é minha sina¨...

...¨Você quer dizer, odiar os Estados Unidos? Não sei se o povo de lá é tão ruim. Vivi um ano lá. Acho que o povo americano não tem a menor idéia do que se faz em seu nome, fora do país¨, disse Isabel, ¨só sei que são contra o comunismo¨...



CAPÍTULO CCLV

¨O povo americano sabe de tudo o que se passa, sim. Sempre soube que o país é naturalmente imperialista, muito antes de existir a URSS. O povo americano sabe que na guerra contra a Espanha seu país tomou Porto Rico, Guam, as Filipinas, invadiu Cuba, vários países da América Central, sabe do Vietnã, sabe do que houve no Chile, no Brasil. O povo americano sabe de tudo, sim, mas finge que não sabe...

...¨Tienes ravia en contra ellos!¨...

...¨Sim, um fogo ardendo que nunca vai apagar e alternativa não há, para quem é assim, a não ser o combate permanente, e de todos os modos, às pretensões dos Estados Unidos. Já ouvi alguém de esquerda dizer que a História não é construída por covardes, que os covardes não aparecem nem no rodapé, que a história é construída por pessoas ousadas que têm coragem, que enfrentam, examinam e têm perseverança. Parece até que é isso mesmo o que acontece! E a História oculta, não existe? Bravatas assim só me fazem rir. Os verdadeiros heróis estão lá, nos cemitérios! São heróis anônimos, sem triunfos, que realizaram coisas que jamais foram reconhecidas, porque sabiam que as grandes coisas são feitas de detalhes, que as mais modestas das contribuições são as mais reveladoras e valiosas e que o que vale, para os que vêm depois, são atos simples, inscritos no rodapé das páginas da História exatamente para durar...

...¨En nuestra sociedad no hay hogar para anonimos!¨...

...Quantos verdadeiros revolucionários comunistas passaram pela História sem serem vistos? A História é uma escolha, Isabel, e felizmente eu sei que minha missão não está longe de terminar. Quem entra acidentalmente na história, mesmo que vá ao ápice, nada mais será do que um detalhe dela própria, a ser esquecido com o tempo, seja ditador ou presidente eleito. A persistência dos que fazem a História, arriscando e correndo verdadeiros riscos é pessoal e muito sutil. Não se muda a História com prudência, gentilezas, bons modos, quem ensina é o próprio capitalismo. Às vezes, a pessoa pensa que está fazendo a História mas simplesmente pode só estar participando, de forma consentida. Engraçado, Isabel, mas agora me lembrei de uma coisa que ouvi do Presidente da abertura, o general de cavalaria... ...´as mudanças levam tempo´, disse ele, e foi o que eu disse em 1975 e venho dizendo, desde então. O jornalista morto não foi apenas mais um mártir ou mais uma, dentre centenas de vítimas. Foi um marco, um instrumento da História. E em breve o povo poderá eleger o seu presidente, quem garante é um general de cavalaria do Exército Brasileiro. Ele pode ter sido morto, sim, por algum oficial sádico. Alguns homens têm prazer em matar. Pode ter sido um desses, mas todo mundo sabe que o Exército Brasileiro não é assassino, Isabel, que é formado de gente do povo, como nós, que têm família, riem, choram, brincam, cantam e, com fervor, querem a paz. Minha sorte é que a caixa preta da história não está perdida. A História é cruel! Infalivelmente, termina desmascarando os aproveitadores. A vitória da verdade virá no fim, porque a verdade não muda. E esta é uma história que ainda permanece em grande mistério, por nunca ter sido contada, mas um dia, tenho certeza, a verdade se revelará. Ela sempre aflora e um dia este caso será todo revelado, detalhadamente. É esta a razão que me faz não temer o passado. Um dia, todos verão que não agi motivado apenas pelo medo ou para escapar, como disseram na época. Escapar de quê?...

...Fez uma pausa e pensativo, desabafou...

...¨Eu quero ver o mundo transformar-se e sei que isso vai acontecer. É impossível continuar com esta bi-polarização. Sabe? Não temo o futuro nem o passado, e o presente eu faço. Porque o caminho estabelecido até aqui é irreversível. Em outubro de 1975 eu escrevi que o mundo está dividido em dois blocos e que nós, o Brasil, estamos no meio. E disse mais, custe o que custar, o destino do Brasil seguirá seu próprio curso. Já lá se foram cinco, seis anos e, para não desperdiçar a vida, continuo insistindo nisso. Olho para trás e vejo que os fantasmas do passado continuam a vagar, por aí; essas imagens ainda me povoam a mente, de vez em quando, quando deito e começo a pensar no que aconteceu, no que vai acontecer e vejo que não vivi a minha vida da maneira como planejava. Carrego comigo essa decepção, mas, ao invés de arrependimento, tenho certeza de que valeu a pena, embora ninguém queira falar do assunto. Preferem o silêncio doloroso, preferem esquecer; ainda bem, o radar da história capta a verdade, que é filha do tempo. Atento ao momento oportuno, que chegará, a História, no tempo certo, revelará todos os segredos do passado. Só sei que as verdadeiras testemunhas, que são os contemporâneos de cárcere, que até hoje não disseram uma palavra sobre o quê e como tudo aconteceu, um dia falarão sobre como e por quê foram presos na mesma época, o que ouviram naquela terrível noite. Há um silêncio de ferro da parte de todos os que se relacionaram com o jornalista, direta ou indiretamente, antes e depois da apresentação. Nenhum dos coleguinhas jamais disse nada, como se nada tivesse existido. Talvez sejam as únicas testemunhas a saber como ele morreu, além do carcereiro de plantão, é claro. Estavam a poucos metros do ocorrido. Que fizeram com a declaração preenchida e depois rasgada por ele, em pedacinhos? Sei que alguém juntou-os, guardou-os em algum lugar¨.



CAPÍTULO CCLVI

Isabel sabia manter os assuntos que o interessavam. Sabia evitar ou não certos tópicos, e isto contribuía para solidificar a união entre eles. Corada e bem disposta, estimulou-o a prosseguir, expor suas idéias sobre o episódio...

...¨E se foi suicídio?¨...

...¨Esta questão ainda não foi resolvida pela História oculta. Uma investigação teria indicado os responsáveis e se algum houve, arquivaram-no. Com o passar do tempo o mistério um dia encolherá. As pessoas esquecem tudo tão rapidamente que as perguntas se perdem no tempo. Esta morte é um dos segredos mais mal guardados do Exército, mas é bom não esquecer que a revisão da História, às vezes, leva à conclusões inesperadas. Provas cruciais sumiram, nunca mais foram vistas porque, na época, evitou-se convocar as pessoas que poderiam colaborar com a investigação. Contudo, sempre será tempo de fazê-la, completa e exaustiva. Quem entregou quem, sob tortura, ou não? Quem levou a repressão ao jornalista, no local de trabalho? Afinal, os que foram presos antes dele eram da sua base. Por quê o silêncio? Embora os segredos permanecem enterrados, as pessoas envolvidas estão vivas. Quem o entregou, embora esse seja um detalhe menor, porque havia uma conspiração, mas alguém o fez, também o matou, tanto quanto os torturadores mataram-no, deliberadamente, para apressar o golpe e, talvez, por ser um judeu. Ainda hoje, isso me deixa em dúvidas, pois havia um outro jornalista, Luís, também da colônia israelita, preso dias antes dele. Por quê mataram exatamente aquele jornalista? Não sei. A viúva moveu uma ação contra o Estado, e vai ganhar porque se trata de uma questão de tutela, mas já disse que não quer nem pedirá indenização. Por quê não? A hipótese de suicídio continua válida, ainda que seja uma única em mil. Razões para tal havia. A vida não é feita só de indícios. Por que ele se suicidaria? Esta hipótese, Isabel, a desprezou o rabino, também desprezaram-na a viúva e a Anistia Internacional. A que conclusão chegou a comissão formada para acompanhar as investigações? Nenhum inquérito foi aberto para apurar o caso e, como ninguém sabe o acontecido, tudo ainda é mistério. Enterraram-no apressadamente, porque sabem que os fantasmas costumam voltar. O caso não foi esclarecido. Se há assassinos, ainda estão em liberdade. Até hoje não se sabe quem são os responsáveis, a história nunca foi esclarecida e só haverá justiça se não deixarmos que caia definitivamente no esquecimento. É sempre hora de se abrir os porões, para que apareça a verdade sobre o passado. Sempre haverá necessidade de se apurar os fatos, de se identificar assassinos. Essa morte terá que ser e merece ser elucidada, para que se julgue a História. Não será difícil encontrar pistas. Há registros físicos, no Exército, que podem levar a isso. Na época, ninguém quis saber. Eu nunca tive tempo nem interesse em ir atrás dos fatos, porém, estou seguro de que, um dia, para o futuro da justiça, haverá alguém disposto a abrir a história. É uma tarefa que não me cabe, pois nem mesmo os envolvidos diretamente foram atrás. É uma lástima, Isabel, mas a memória é curta. Nunca provaram qualquer culpa minha em todo o episódio, mas um dia, cedo ou tarde, a verdade será conhecida porque, felizmente, na História há certos eventos que não podem ser apagados. Cedo ou tarde este caso será julgado. São explicações que exigem tempo, podem levar anos, décadas. Mas, ´dona´ verdade é implacável!¨...

...Ao ouvi-la comentar sobre a lei do karma, filosofia de causa e efeito, em que o efeito segue a causa, ou a idéia do eterno retorno à origem, que tanto perturbou Nietzsche, se recolheu. Com alguma tristeza, perguntou...

...¨Minha vida poderia ter sido diferente?¨...

...Isabel o consolou, abraçando-o com força...

...¨Nem o bem nem o mal passam em vão, tudo tem a sua significação e importância ocultas. O hindu acredita na lei do eterno retorno. Carl Gustav Jung, autor da lei da sincronicidade, diz que nada acontece por acaso, tudo acontece por alguma razão, resultado de nossas ações passadas¨...

...¨Ou não¨, disse ele, ¨ninguém é forçado a assumir o destino. Nada me forçou e, mesmo sem saber em que ia dar isso tudo, eu assumi o meu. As coisas podem simplesmente acontecer, desde que haja um ser ativo¨...

...¨Não é bem isso, amor. Não tente se enganar, porque não foi sua a culpa do que aconteceu ou não aconteceu. Karma é a lei de causa e efeito. Existe um desígnio para cada pessoa¨...

...¨Não creio nisso. Passei anos da minha vida no Partido Comunista, só pensando numa coisa, o imperialismo americano. Nunca o perdi de vista. Cada regime vive ciclos de crescimento, plenitude e decadência. A fase final do imperialismo americano já começou!¨...

...¨Sim, mas segundo a lei do Karma se pode colher os frutos de todas as vidas que cada ser vive, todas as existências anteriores; karma é a fatalidade dos nossos atos, tanto nas nossas vidas anteriores como na presente. Os acontecimentos de hoje são resultados de ações anteriores, e tudo o que acontece fica registrado, guardado; só tempo é a verdade das coisas, e com o tempo cada coisa aparece, porque d(eu)s é juiz dos vivos e dos mortos¨...

...¨Olha, Isabel, prefiro Nietszche, com a lei do eterno retorno, de que o que está aqui e agora vai passar, mas voltará, porque as coisas, mesmo quando desaparecem da nossa vista, continuam existindo. O que desaparece sempre volta a aparecer. Aliás, lembrei agora, prefiro uma citação de Bakhtin, escrita na capa do disco de Brahms que Hermes me deu de aniversário...

...´Nada é absolutamente morto. Todo o significado terá algum dia o seu festival de regresso ao lar´. E se ele se matou, também aparecerá. Não se mata impunemente. Por que só ele morreu? Havia outros presos, além dele. Teriam razões para se matar, os outros? Ele teria?¨...

...¨O operário que morreu depois, se matou? Que cosa esquisita, amor!¨...

...¨Parece que a primeira versão é a ´verdadeira´...

...¨Sabe? Quem matou o jornalista responderá junto ao tribunal de d(eu)s, porque sempre a verdade triunfa sobre as aparências¨...

...¨No tribunal de d(eu)s, não digo; no da História, certamente¨...

...¨Se pudesses escolher novamente, o que farias?¨...

...¨Fiz o que tinha que fazer, do meu jeito, da maneira que eu sou, porque jamais acreditei que os problemas se resolvem por si mesmos. Com minha mãe aprendi que as boas ações, sem querer nada em troca, devem ser feitas em segredo. Eu mereço uma vida normal, mas sei que não a terei porque toda essa crise fez gerar em mim um tipo de revolucionário todo especial. E, quando se age pelo coletivo, então, fica mais difícil. Sempre me dei mais do que os outros, todo mundo sabe disso, e, realmente, tentei ajudar. Nunca juntei, nunca acumulei, sempre agi e me sinto realizado assim, como revolucionário, muito mais leninista que marxista. E a cada dia que se passa, mais minhas previsões se tornam verdade e, passados praticamente seis anos, ainda não fui derrotado pela História. Lutei com as armas de que dispunha e a firmeza da minha convicção marxista-lenista, pelo retorno da democracia e você não imagina quanto é bom, quando ainda há quem diga que o regime militar está forte, ver o Brasil se reencontrando consigo mesmo. A contradição é criadora, só ela pode criar, e, se, entre aspas, decepcionei, a expectativa da esquerda e dos meus colegas de imprensa, ao ficar do lado dos militares, jamais ninguém poderá imaginar o prazer secreto que tive ao longo de todo esse processo, ao vigiar a ditadura, vê-la desmantelar-se peça por peça, corroída como se uma lima passasse por ela, acompanhando gradualmente o seu fim, vendo-a escorraçar-se por um poder maior que a força, a inteligência e a ação silenciosa de alguns brasileiros, pouquíssimos, que sem e apesar da interferência norte-americana, introduziram um novo tipo de fazer política na vida brasileira, a renúncia, o sacrifício pessoal. A ditadura não vai durar muito, Isabel, e sem enxergar a verdade, porque não quer, a esquerda acompanha de longe, pela televisão, jornais e revistas, cada passo da mudança. Só receio o futuro. Temo que, nessa grande e nova aventura chamada democracia, que está para começar, se um dia a esquerda chegar ao poder, o que dirá? Que derrotou os militares com o apoio das massas, se nunca reclamaram nada contra estes? Será que terá a decência de dizer que chegou lá porque alguém permitiu que acontecesse, ou, em outras palavras, como a História um dia mostrará, que lá chegou porque a principal e única fonte de autoridade, os militares decidiram sair e ceder a vez? O processo brasileiro de redemocratização ainda não tem explicação conhecida, mas um dia terá¨.



AMANHÃ OS CAPÍTULOS CCLVII, CCLVIII, CCLIX, CCLX, CCLXI E CCLXII


  

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